quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Prova de Gramática - Parte 03

(Adriana Avellar)
Hoje é o pior dia de todos os meus doze anos. Tirei 2,8 na Prova de Gramática e agora estou sendo zuada pela Áurea, a nerd que senta na carteira ao lado, que , desconfio está namorando o Roberto, o garoto mais bonito da sala.
-          Quanto você tirou? – a Áurea me pergunta.
-          Ah, eu tirei uma nota – respondo, sub-repticiamente, para usar uma expressão nova que aprendi ontem num daqueles livros policiais de banca que a minha mãe gosta de ler. Os escritores policiais, acho, adoram sub-repticiamente.
-          É claro que foi uma nota, né? Mas de quanto foi essa nota? – a Áurea frisa e chama a atenção de todos os que estão por perto. Fico em silêncio.
-          Não quer dizer é porque tirou uma nota baixa – ri a debochada.
-          Eu posso ter tirado uma nota maior que a sua! – quase berro, fingindo rir.
-          A minha nota é dez! – ri a Áurea, exibindo a prova com um enorme Parabéns da Dona Gerúndia.
Todos estão olhando pra mim. Meu rosto está quente, eu devo estar parecendo um tomate.
-          E a dela é vinte! – diz Roberto, o garoto mais lindo da sala, exibindo uma nota amarelinha de vinte reais – Eu pedi emprestado mas vou devolver – completa, mais debochado ainda que vinte áureas juntas.
Todos riem. Roberto estende a mão e eu pego a nota. Ele pisca o olho pra mim. Agora eu devo parecer uma salada de tomate com pimenta calabresa. Mas ainda consigo sorrir. Áurea, que estava em pé me desafiando, senta-se, sem graça. Ninguém tira da minha cabeça que essa garota tem uma quedinha pelo Roberto, meu herói que me salvou a vida hoje. Eu até achava que ele tava namorando essa metida. Agora sei que não.
-          Depois da aula me devolve essa nota que é pra eu comprar um livro em inglês, hein? – Roberto fala quase sussurrando.
Eu respondo com um sorriso. Livro em inglês? Ele é poliglota! E além de tudo, freqüenta livraria. Eu tinha certeza de que existe alma gêmea. Hoje é o melhor dia de todos os meus doze anos.
Continua.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Prova de Gramática - Parte 2

(Adriana Avellar)
Não sei quem foi que inventou as regras gramaticais. Coitado do Machado de Assis. Como será que ele era obrigado a usar as regras gramaticais? Talvez o dono da editora, que era o chefe dele, encomendasse: quero um livro que contenha vinte e oito hipérboles, três pleonasmos, quinze metáforas, trinta e duas figuras de linguagem a escolher, 545 orações coordenadas adversativas ou subordinadas conformativas, consecutivas ou proporcionais, 48 locuções conjuntivas conclusivas ou explicativas. Tem que ter também 52 tipos de o que o autor quer dizer para as provas de interpretação de texto. Ah, e antes que eu me esqueça: precisa também ter uma história.
Encontre o sujeito na frase. Ei, peraí, isso é uma prova de português ou um jogo de detetive? O sujeito não está no hall, não está no escritório, não está no salão de jogos nem no de festas, nem na sala de música ou de jantar ou de estar. Estaria o sujeito na cozinha? Não, o sujeito pode ter se escondido na biblioteca dentro de algum livro daquelas coleções enormes de capa dura vermelha. Se eles tivessem miolo. Parece incrível, não é? Mas tem gente que compra capa de livro a metro pra enfeitar a estante.
Foco na prova. Foco na prova. Retire do texto duas palavras com derivação parassintética. Dê o aumentativo sintético e analítico dos substantivos grifados. Sublinhe no texto três substantivos abstratos e um composto. Dê dois exemplos de superlativo absoluto sintético. Identifique o agente da passiva no quarto parágrafo. O que é siglonimização? Como é que se conjuga o verbo danar na primeira pessoa do singular no modo imperativo? Não. Essa última pergunta é minha mesmo. Vou me dar mal e ficar em recuperação.
-          Tempo esgotado.  Entreguem a prova.  Silêncio! Não quero ouvir um pio!
Esse é o momento martírio. Todo mundo calado, sem poder dar um pio, enquanto Dona Gerúndia silenciosamente corrige as provas. A única vantagem é que ela não pode impedir ninguém de pensar. Porque o resto, ela proíbe. Depois ela chama um a um e dá a sentença. E a minhaé: nada de querer se escritora. Preciso encontrar uma profissão bem longe dos livros. Talvez eu trabalhe numa loja de departamentos. Vou vender eletrodomésticos. Não! Lá, tem manual de instruções. Não deixa de ser uma espécie de livro.
-          Carlos Heitor, venha buscar a prova.
Pronto. Começou a distribuição. Agora ela entrega um a um e quem tem dúvida, levanta a mão que ela vai até a carteira e tira a dúvida, baixando ainda mais a nota. Ela sempre encontra um jeito de baixar ainda mais a nota. Por isso, eu sempre fico calada.
-          Luís Fernando! Rubem! Gabriel! Lígia!
Ai, Deus, quando for minha vez, faça com que a Dona Gerúndia não conte certo meus erros. As provas deviam se apenas uma redação. Belo final e ótimo começo. O corpo também está muito bom. O professor de redação sempre me avalia assim. Eu posso até não saber o termo técnico do substantivo, mas sei perfeitamente como usá-lo. Eu também sei usar os acentos. Eu posso até nem saber exatamente o porquê deles estarem ali, mas sei que é onde devem estar. Canso de ver as palavras escritas nos livros.
Já pensou se a Dona Gerúndia fosse delegada? E resolvesse obrigar todo mundo a decorar as leis? E aí, toda esquina ia ter um guarda. Documentos, por favor, cidadão. E o cidadão ia mostrar os documentos e o guarda ia revistar e o cidadão não estaria armado e por que o senhor não está armado? E o cidadão ia dizer não tenho arma, e o guarda ia perguntar por quê, qual o número da lei que proíbe o cidadão de andar armado e exatamente o que diz a lei? E se o cidadão não soubesse responder, cana! E ele ia aparecer escondendo o rosto naqueles programas de TV que dizem, cadeia nele! E a dona Gerúndia ia dar entrevista e dizer que quem não conhece todas as leis municipais, estaduais e federais não pode ter a ousadia que querer sair de casa, cidadão!
Continua.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Prova de Gramática - Parte 1

(Adriana Avellar)
Sempre gostei das proparoxítonas. São as palavras mais simpáticas da língua portuguesa. Toda véspera de prova sonho encontrá-las, uma atrás da outra, na questão sobre acentuação. Sempre fui péssima - péssima é proparoxítona – sempre fui péssima em decorar regras gramaticais. Acentuam-se todas as palavras paroxítonas terminadas em... terminadas em quê mesmo, hein? E as oxítonas? Quando é que precisam ser acentuadas? Ai, meu Deus, não sei! Eu, em pânico - para usar outra proparoxítona - eu, em pânico. Não posso tirar nota baixa em português.
Acentuam-se todas as palavras proparoxítonas, não é o máximo? Não importa se elas são terminadas em “r” ou em “s” ou qualquer outra letra; se tem hiato, ditongo ou dígrafo. Já oxítonas e paroxítonas enganam a gente. Se alguém perguntar se oxítona é proparoxítona, qual a resposta certa? Sim. Mas não também está correto. Confuso, não? Pois bem, oxítona devia ser oxitoná e paroxítona devia ser paroxitôna. Mas não são. Por isso eu gosto das proparoxítonas, elas nunca traem!
Ai, meu Deus, todo dia de prova eu fico assim. Eu não devia ficar tão nervosa, eu não fiz cola, não abri o livro debaixo da carteira, nem espichei o olho para a prova da Áurea, a nerd que senta na carteira ao lado. Mas também, olha só o jeito com que ela esconde a prova! Ela praticamente deita em cima do papel! E também Dona Gerúndia dá uma prova diferente para cada fila. Vai ver ela pensa que eu vou colar. Não. Colar, eu não vou. Jamais correria o risco de dar a ela o gostinho de me pegar numa errada. Pode me revistar se quiser. Vem ela. Fez bem. Passou direto. Por enquanto escapei, mas eu preciso saber responder a essa questão.
Numere a segunda coluna de acordo com a primeira. Ai, não. Esse negócio de numerar só devia cair em prova de matemática. Essa confusão de português com matemática me dá nos nervos. Acho que vou ter uma convulsão! Calma. Não precisa ficar tão nervosa. Tente fazer a questão. Na pior das hipóteses é só colocar os números em qualquer ordem. Você terá mais chances que jogar na sena. São dez sentenças numeradas na esquerda correspondendo a dez respostas na direita. É só combinar 01 com d, 02 com f, 03 com h etc. Tenta. Tenta. Nota vermelha é que não! Eu devia ter estudado mais, decorado mais, prestado mais atenção na aula, devia ter me distraído menos, viajado menos, errado menos...

-          Ricardo, entregue a prova e pode sair de sala. Vá já para a direção!

Jesus! Isso é vociferar. Eu sempre quis saber o que era vociferar. Descobri na primeira vez que dona Gerúndia botou um aluno pra fora de sala. Isso é vociferar! Ela só não pode vociferar comigo de novo. Da última vez foi pra dizer que quem não conhece as regras gramaticais não pode ter a ousadia de querer escrever, menina!!! Esse escândalo todo porque eu falei, quando ela perguntou, que eu queria ser escritora. Ela pensou que eu estava debochando, mas eu falava a sério.
Até antes dessa vociferação, eu pensava que talvez pudesse escrever alguma coisa. Sem compromisso. Uma carta pra Bia, minha melhor amiga. E depois no futuro, ela iria vender no leilão da Sothersby’s, por um leiloeiro inglês. Não! É melhor um leiloeiro francês pra dar mais sonoridade, charme. Pois ela iria vender a carta e comprar uma linda casa. E um carro. E muita bala azedinha. E o William Bonner iria falar logo no início do Jornal Nacional “primeiro manuscrito original de Nobel de Literatura arrematado por 300 mil dólares”.
Não! Acho que eu não quero ser Nobel de Literatura. Acho legal ler meu nome nos jornais, mas prefiro entrar na lista dos mais vendidos. É, porque minha tia Iolanda disse que eu tenho que escolher. Ou escrever best-sellers ou ser a queridinha dos intelectuais. Parece que não existem intelectuais suficientes no mundo para colocar um livro na lista dos mais vendidos. Eu já tinha notado isso no caderno de livros do Globo e no Idéias do Jornal do Brasil. Eles sempre perguntam qual livro o intelectual está lendo. É sempre um que eu nunca ouvi falar e está sempre fora da relação dos campeões de venda. Às vezes eles perguntam que livro eles recomendam, mas pelo visto ninguém dá bola pra recomendação deles. Se não, na semana seguinte o recomendado estaria na lista dos mais vendidos, não é mesmo? Eu queria poder não dar bola pras recomendações da Dona Gerúndia. Acho que vou ficar em recuperação em português.
Que lindo! Um fragmento de texto. É assim que Dona Gerúndia chama as pequenas histórias que ela usa pra análise sintática. Análise sintática! Se não fosse uma expressão com duas proparoxítonas deveria ser banida da língua portuguesa. Como é que eu vou saber que figura de linguagem o autor usou no segundo parágrafo? Eu não moro com ele, eu nem o conheço, meu Deus, como é que eu vou saber? A única coisa que sei é que saber para mim agora é verbo intransitivo. Eu preciso saber. Não interessa o quê. Vou passar direto para as questões de acentuação. Sempre tem questão de acentuação nas provas da Dona Gerúndia.
Não acredito! Nenhuma proparoxítona. Dona Gerúndia é má. Ela é muito má. Como é que pode uma prova de gramática sem pergunta envolvendo proparoxítonas? É uma injustiça! Elas são o máximo, elas são charmosas e muito chiques. E o som? Não é fantástico? Véspera, trágico, médico, lívido, preâmbulo, sintomático, enigmático, pneumático... É só enfileirá-las. As proparoxítonas já nasceram poesia. 
Continua.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Assim já era, assim já é

(Ligineia Avellar)


Fatos reais. De ontem e de hoje.

Cena 01: Casa da minha mãe. Primavera de 1965. Minha mãe costura um vestido branco e nossa vizinha amiga faz companhia no maior bate papo. Assunto: vida dos outros, é claro, desta vez da cliente do vestido de noiva.

Vizinha:
- Mas porque ela quer vestido de noiva?
Mãe:
É para tirar uma foto e mandar pros parentes no interior. Cê sabe né ela é de Minas e os parentes não sabem da história.
Vizinha:
Também com 23 anos e encalhada... Foi arranjar esse velho ...Cê sabia que ele tem cinqüenta anos???? É fiscal da Receita Federal.
Mãe:
Mas pelo que estou sabendo ele é casado. Ela me pediu para colocar um véu. Isso eu não faço, que não vou sustentar mentira dos outros. Mas o vestido branco, tudo bem.
Vizinha:
É, ele é casado sim. Mas ele disse pra ela que a mulher dele tem problema. Tem muito tempo que eles não fazem aquele negócio...
Mãe:
Cê boba. Todo homem quando quer mijar fora do pinico, inventa essa história. A desculpa é sempre essa. Eu sei, já ouvi esse papo ó...
Vizinha:
Mas ela tá numa vida boa danada... Até saiu do trabalho...Ele dá tudo pra ela. Comprou uma frigidaire novinha, branquinha, linda. E a Telefunken? Não dá nem pra comentar, que vão dizer que tô com inveja. Tela grande, gabinete, a mais cara da loja. E o sofá? Tu acredita que ela escolheu da Gelli e ele deu pra ela? Tudo do bom e do melhor.
Mãe:
Mas e a mulher dele? Já pensou se ela ficar sabendo?
Vizinha:
Ela desconfia. Ele diz que está fazendo hora extra.Ela não caiu nessa não, mas ficou quietinha. Inclusive fiquei sabendo que ela falou, que se ele sempre manter o conforto que ela sempre teve, viagem pra Guarapari todo ano, modista todo mês, e troca dos móveis no Natal, e desde que não “procure” ela de noite, ela finge que não sabe de nada...

Cena 2: Confecção de roupas. Hora do almoço. Primavera de 2010. Marielza e Turmalina no maior bate papo. Assunto: vida dos outros, é claro, desta vez , do motorista da Confecção onde Turmalina trabalhava antes.

Turmalina:
Cê tá sabendo? Maior babado, babado forte mesmo. O Clarisvaldo tá de caso com dona Creuza.
Marielza:
Dona Creuza, a patroa, a dona da confecção?
Turmalina:
Pois é, menina.
Marielza:
Mas o Clarisvaldo só tem 23 anos.
Turmalina:
Essas coroas de hoje só querem pegar garotão. Imagina ela fez cinqüenta anos no ano passado, maior festão.
Marielza:
Ela só tem cinqüenta? Pensei que tivesse mais...
Turmalina:
Pois é. Mesmo depois de ficar internada naquela clínica de estética por um mês né, não adiantou muito não....
Marielza:
Mas ele não é casado?
Turmalina:
É casado sim. Mas ela disse que tava carente, que poderia compartilhar o que a vida tem de melhor.
Marielza:
Essas mulheres, cada vez mais sem vergonha. Carência agora é desculpa para qualquer coisa...
Marielza:
Mas ele está com uma vida boa danada. Até do trabalho saiu. Ela dá tudo pra ele, do bom e do melhor. Laptop última geração, celular, é quantos modelo novo saem, é quantos que ele ganha, bluray E a 3D? Não dá nem pra comentar, que vão dizer que tô com inveja. Tela grande, a mais cara da loja. E o carro? Tu acredita que ele escolheu um crossfox e ela deu pra ele?
Marielza:
Mas e a mulher dele? Já pensou se ela ficar sabendo?
Turmalina:
Ela desconfia. Ele diz que está fazendo hora extra. Ela não caiu nessa não, mas ficou quietinha. Inclusive fiquei sabendo que ela falou, que se ele sempre manter o conforto que ela tem agora, viagem pra Cabo Frio todo feriadão, crediário nas Casas Bahia – e desde que também compareça de noite - ela finge que não sabe de nada...
FIM

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Avanço

(Adriana Avellar)

A história é verdadeira. Ano de 2010. Município de 400 mil habitantes.

Conheceu o cara na balada. De cara, ele mostrou que tava afim. Ela nem tanto. Deixou passar uns dias, até que rolou um ligeiro clima. Foi quando a amiga, que sempre dava carona avisou:

- Hoje, não tem essa de querer ir embora cedo não!Se meu paquera estiver lá, eu fico. Ou saio com ele.
- Tudo bem - combinaram as outras quatro amigas - a gente racha um taxi na volta.

Não foi preciso. O carinha ofereceu carona. Ela foi sentada na frente. As outras três atrás. E ele, claro, levou cada uma em casa. Deixou-a por último.

- De repente até rola uma parada maneira - ela pensou.

No portão de casa, na intenção da despedida, o cara tascou-lhe um beijo. Beijo profundo. Segurou-lhe a mão. Primeiro, com muito carinho. Depois, com mais intensidade.

Numa atitude intempestiva, durante o beijo, forçou-a para dentro de suas calças. A braguilha já estava aberta. Ela chocou. Tirou a mão rapidamente. Saiu do carro. Correu, sem olhar para trás, entrou. Ali, no portão da casa dela! Logo depois do primeiro beijo! Que ele tá pensando?

Normalmente, faria um escândalo, comentou mais tarde com as amigas. Mas a surpresa foi grande, não teve reação. Só correr. Aquele filho da puta! Diante de seu portão, onde era melhor não chamar a atenção da vizinhança!

Apenas saiu correndo do carro e entrou em casa. Com a promessa de nunca mais ver esse babaca. Um avanço desse jeito!

Agora, passado o susto, já até consegue rir e fazer piada, mas promete para as amigas, todas na faixa dos 60:
- Nunca mais eu vou naquele baile da terceira idade!

FIM.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Especializado em massas

(Adriana Avellar)

A história é verídica. O restaurante, em Petrópolis, recém-inaugurado. O grupo quer apenas uma boa comida feita com cuidado. No cardápio, uma variedade infinita de pratos: caldos, sopas, carnes, assados, grelhados, carpaccios, saladas. E massa, a especialidade da casa.

- Tem tanta coisa nesse cardápio que eu duvido que consigam fazer tudo bem feito – comenta a cética do grupo. Melhor apostar na garantia sem obviedade: a especialidade da casa.

Depois de um desfile de maitre, garçom de água, garçom de bebida, garçom de guardanapos, garçom de utensílios, enfim, o garçom para anotar os pedidos.

- Se depender da quantidade de pessoas no serviço, a comida é boa.
- Restaurante com muito atendente na mesma mesa, raramente é bom.
- A massa é feita aqui mesmo? – pergunta alguém ao garçom.
- Ora pois, onde haveria de ser feita?, transfere a pergunta o garçom.
- Vocês usam massa fresca, então?
- Aqui é tudo fresquinho.

Pedido feito. Pedido à mesa, meia hora depois.

- Que isso? Gente, essa massa tá cozida demais! Parece sopa! Ah, vou falar com o garçom. Garçom!
- Pois não?
- Nós pedimos massa, mas vocês trouxeram sopa! – mostra a massa desmanchando em contato com o ar.
- A senhora queria o molho separado?
- Não, eu queria o molho junto. Só que essa massa tá com consistência de sopa.
- É o molho, eu já disse.
- Eu não tô falando do molho. Eu tô falando do ponto de cozimento da massa.
- Mas eu não tô entendendo o que a senhora tá querendo.
- Eu quero a massa al dente.
- Então eu vou chamar o maitre, responde, sussurrando enquanto sai: “Essa gente que não tá acostumada a comer fora!”

O maitre chega. Todo o diálogo se repete.

- Então eu vou chamar o cozinheiro. Essa gente que não tá acostumada a comer fora!

O cozinheiro não chega. Em seu lugar, o dono do restaurante.

- Aqui o cliente tem sempre razão. Aqui nós fazemos o gosto do freguês. A senhora desculpe.
- Sim, sim.
- Três garçons faltaram. Só vieram no primeiro dia. Quem tá me dando uma força aí é o rapaz que trabalhava comigo na confecção que eu tinha na rua Teresa.
- Tudo bem, tudo bem. Não é nada com o garçom.
- Mas deixa eu explicar. O rapaz é bom, mas nunca trabalhou atendendo o público.
- O meu problema não é o garçom que foi muito simpático.
- Qual o problema, então?
- Nós pedimos massa, especialidade da casa, mas veio assim, ó, quase derretendo.
- Porque quente que é bom. Massa tem que ser servida bem quente, mas se a senhora prefere mais morninha, já deve estar no jeito.
- Eu não quero massa mais morninha, eu quero al dente.
- Ao dente? Ah, a senhora quer mais alho no molho!
- O que o alho tem a ver com isso, meudeusdocéu?
- Alho, dente de alho.
- Peraí, deixa ver se entendi direito. A especialidade do restaurante é massa mesmo?
- Claro.
- E o senhor não sabe o que quer dizer al dente?
- Se a senhora não me explicar como é que eu vou saber?
- Imaginei que num restaurante especializado em massa essa seria a última coisa que eu teria que explicar.
- Minha senhora, eu estou aqui tentando ajudar e atender o seu desejo. Mas se a senhora não me explicar direitinho que a senhora quer...
- Eu quero a massa al dente. Numa textura que dá pra mastigar, compreende?
- Sei, textura, sei. E como eu faço isso?
- Como faz o quê?
- A massa ao dente.
- Vai depender do tipo de massa que vocês usam, do tempo necessário de preparo. Como eu vou saber?
- Se a senhora não sabe o que quer, eu não posso adivinhar.
- Eu quero a massa al dente.
- Isso a senhora já falou, mas não soube explicar direito. Vou simplificar, pra senhora conseguir explicar. Qual é a diferença entre a massa que tá aí no prato e a massa que a senhora quer?
- Meu senhor, a massa que está aqui no prato está cozida demais, muito além da conta!
- Ah, é isso? Por que a senhora não falou logo que queria mal passada?

O restaurante fechou. Acabaram-se os incautos clientes de primeira e única vez.

FIM.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Não é o prato que importa, mas a interpretação do prato.

(Adriana Avellar)

Gastronomia
O maitrê se dirige à mesa dos convidados do renomado restaurante que só atende mediante reserva com antecedência mínima de um mês.
- O chef preparou consomé de delicadas raízes tuberosas, servido sobre leito de fios de alho poró e lascas de trufas pretas frescas, dentro de um autêntico pão italiano, emoldurado por uma cesta crocante de Parmigiano-Reggiano. Acompanha combinado de ervas aromáticas cultivadas em região de Serra, vaporizadas pelo sabor suave e picante de azeite de oliva da varietal ogliarola.
- Maravilhoso, retumbante, fantástico!

Culinária
A professora, na bancada da cozinha, instrui os atentos alunos.
- Os legumes são cortados em cubos de cerca de dois centímetros. Refogamos a cebola e o alho, juntamos os legumes e o caldo de carne, que ensinei na aula passada. Deixa reduzir para apurar o sabor e ficar na textura ideal. À parte, numa frigideira, polvilhamos o parmezão e deixamos em fogo alto até ficar crocante. Usamos essa cestinha para servir os pedaços de pão. A salsa e a cebolinha são salpicadas na sopa já no prato.
- Delícia!

Comida
Duas amigas no escritório, ao final do expediente.
- Que cansaço! Chegar em casa, ainda tenho que encarar fogão. Esse negócio de fazer jantar é que acaba comigo.
- Eu, no inverno, só faço sopa. Hoje mesmo vou chegar em casa, refogar um músculo com cebola e alho, botar pra cozinhar na panela de pressão por uns 15 minutos. Aí, descasco os legumes que tiver na geladeira, corto assim mal e mal, junto na panela, mais cinco minutos e pronto! É só jogar um cheiro verde, um fio de azeite extra virgem, um queijinho ralado. Todo mundo adora.
- Muito bom.

Gororoba
O menino entra correndo na cozinha, gritando.
-Mãeêêêêê, o pai mandô perguntá o que qui vai tê de janta.
- Sopa de entulho.
- Eba!

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Comida Honesta

(Adriana Avellar)

Estavam perdidos. Desceram mais uma vez na estação errada. Era a terceira. A fome aumentando e nada de encontrar o famoso centro gastronômico. Resolveram procurar restaurante por ali mesmo. Simplicidade. Quem sabe uma comida honesta, uma surpresa agradável. Andaram muito.E mais ainda. Encontraram um que consideraram simpático. Não se sabe se pela fome ou se pela varandinha, pelas mesas com toalhas vermelhas ou pelo “desde 1948” do letreiro.
O garçom, um senhor idoso, cabelos de neve, com jeito tradicional, paletó branco e gravata borboleta, estava na porta se despedindo de uma mulher.


– Tudo bem, Conceição. Pode ir tranqüila e deixa que eu me viro por aqui, se precisar. Bom apetite.

Ao vê-los, o garçom inclina-se, numa afetada solicitude, abrindo espaço para entrarem. Logo depois, está com um bloco, junto à mesa dos seis. Três casais.

– Bom dia. Ernesto, ao dispor dos senhores. Peço desculpas - diz, numa linguagem tão afetada e falseada quanto a postura - Estava me despedindo da... - deixa transparecer algum prazer em dizer isso – ...da assistente da cozinha.

– Assistente de cozinha? – estranha o mais alto do grupo – Achei que o senhor tivesse dito “bom apetite”.

– E disse. Ela está indo almoçar – responde o garçom, mantendo a naturalidade, enquanto distribui cardápios para cada um da mesa, mas enfatizando “indo almoçar”.

– Indo almoçar? Mas ela saiu do restaurante!

– E-xa-ta-men-te – fala, colocando coberturas de papel sobre as toalhas.

– Não me diga! Os funcionários não podem comer da própria comida? – surpreende-se uma das mulheres do grupo.

– Poder, pode. Mas ela detesta comida requentada – há um claro tom de deboche.
Silêncio. Todos desviam a atenção de seus cardápios. Teriam entendido direito? O garçom continua, com naturalidade.

– Na primeira ou na segunda vez até que come. Mas ela hoje não trouxe marmita.

– A assistente de cozinha traz marmita de casa?, espanta-se a loura.

– Nem sempre. Às vezes, a gente reparte uma quentinha. Hehehe.

O garçom estaria ironizando?

– Quentinha?!?, quase berra o marido da loura.

– Nada como uma comida fresquinha, feita na hora – diz o garçom, ao terminar de colocar a última toalha de papel. Rápido, sem tempo de questionamentos, se posta ereto, ao lado da mesa, com bloco e caneta.

– Já escolheram?

Há um ligeiro mal estar. Troca de olhares. Um riso nervoso aqui e ali. Seria algum tipo de brincadeira? O garçom é bem idoso. Parece sério.

– Traz uma gelada, enquanto a gente decide – diz o mais velho da mesa, para ganhar tempo.
– Uma gelada - repete o garçom, sussurrando enquanto anota – Coitados, vão entrar numa fria.

– Não entendi?

– Só temos chope.

– Seis.

O garçom faz menção de sair, mas dá meia volta.

– O senhor me desculpe. É que simpatizei com vocês.

O garçom se inclina, aproximando-se ao máximo do ouvido do homem mais velho.

- Sabe como é. Final de barril. O chope tá saindo que é espuma pura - diz com os olhos fixos no homem do caixa, um homem com cara de quem, literalmente, comeu e não gostou. – O patrão não deixou trocar. Se eu fosse vocês, escolhia outra bebida – sussurra e volta à postura ereta inicial.
O freguês olha de novo o cardápio, faz sinal para os amigos na mesa, discretamente. Olha para o homem no caixa e fala alto.

– Mudamos de idéia. Quem vai de caipirinha?

O garçom faz cara assustada, tentando avisar algo em gestos contidos.

– A caipirinha é feita com a caninha da boa, compreende? – fala alto, mas logo abaixa-se e sussurra, com uma risadinha cúmplice, sem tirar os olhos do homem do caixa. – Mas o limão passa de copo em copo. O senhor vai ver: parece bebum, chega a tá inchado!

– Água. Água para todos – adianta-se uma das mulheres.

– Com gás, senhora, com gás - fala alto para chamar a atenção do dono no caixa. –É só um tiquinho mais cara, mas é infinitamente mais gostosa - baixinho: e garantida.

– Ótimo! Água com gás para seis!

O garçom sai e volta com a bandeja, garrafas de água e copos. Faz questão de abrir as garrafas na presença de todos, exagerando no gesto, como quem quer dar garantia de inviolabilidade. Agora ele está mais sorridente. Sente que foi instaurada a confiança profissional.

– Essa empada de palmito... – diz a acompanhante do homem mais velho – a massa é daquela que derrete na boca?

– Derrete! - o garçom abaixa-se, satisfeito com o que vai revelar. – Já deve até estar derretida, com esse calor! Ficou muito tempo fora da geladeira - completa sussurrando.

– O senhor quer dizer que a empada tá velha? – pergunta a mulher.
O garçom se apavora, olha para o caixa, percebe que o dono continua distraído. Relaxa.

– Por favor, a senhora não vai me comprometer com o patrão! – pisca o olho.
– Pode falar a verdade – incentiva o novo cliente amigo.

– Velha, eu não diria: chamar uma senhora de velha é falta de respeito – diz, com um riso debochado cheio de confiança. – Eu diria até gatosa, porque ela é bem simpática. hehehe. Ainda vai dar um caldo – ri de novo, gostando da própria piada. – Se a senhora passar aqui amanhã vai poder experimentar. Hehehe. O caldo feito com a empada encalhada. hehehe.

– Eles fazem caldo de empada? – pergunta o cliente amigo, em segredo também.
– De empada só não. De tudo que não tem saída e fica na geladeira. Vou dizer uma coisa pra vocês: o arroz tá fresquinho, isso eu garanto. Pode pedir uma saladinha de tomate e cebola; não pede alface não, que só jogam na água com vinagre; e um bife mal passado com batata frita.

–Se o senhor garante, pode trazer! – sorri, cúmplice, o mais velho da mesa.
O garçom sai para providenciar. Mas agora, ele já é atração. Basta passar perto da mesa, para alguém chamar. Todos querem experimentar sua, digamos, espontaneidade.

– O pastel de carne é fresco?

– Fresco? O pastel é feito de bofe. Hehehehe. Não tem frescura com ele não!

– E o picadinho à moda, como é feito?

– Ih, isso aí é sobra de bife!

– E o escondidinho de carne seca?

– Esse é sincero. hehehe. A carne seca fica escondida. Tem painco, conhece? Não sai de jeito nenhum! hehehe

– E de sobremesa, seu Ernesto?

– Melhor fruta. O abacaxi tá bom. Pode comer, que eu garanto.

– Abacaxi para seis!

– Vocês já devem até cantar parabéns de aniversário das comidas, hein? - exagera o mais jovem da mesa.

– O quê? - ri, gostosamente, apontando para um garçom que passa com bandeja. – Aquela ali, por exemplo, a Margarida.

– Margarida? Mas é um homem!

– Tô falando da galinha. Tá tanto tempo aqui que hoje demos um nome pra ela. Hehehe. Já foi assada, depois virou picadinho, depois virou estrogonofe, agora é caldo! Hehehe.

– Fala sério, o senhor está de aviso prévio?

– Não demora muito ficar. Mas eu posso me aposentar. Estou aqui há mais de 40 anos! Esse restaurante aqui era bom. Vinha gente famosa. Depois que o velho dono morreu, acabou! Esse menino aí – mostra o homem do caixa, nem tão menino assim. – Esse não entende de nada. A comida daqui era bem honesta. Agora honesto aqui é só os garçons!

FIM.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Viração grifada

(Adriana Avellar)

- Senhores passageiros, desculpem-me por interromper o silêncio de tão agradável viagem.

A mulher, a bordo de um terno Armani, não se sabe se original, se posiciona no corredor de frente para passageiros.

- Eu sou uma ex-proprietária de boutique multimarcas, fechada compulsoriamente por ter sido injustamente acusada de sonegação fiscal.

Fala enquanto encaixa as peças de um carrinho desmontável.

- Eu poderia estar cometendo algum crime de colarinho branco ou lavando dinheiro em campanhas eleitorais, mas a responsabilidade social fala mais alto.

Certifica-se de que conseguiu atenção da platéia.

- Pensando no bem estar de pessoas como vocês que aliam preço e qualidade, trago uma promoção imperdível.

Estica e puxa um sutiã de renda vermelho, que retira do meio de lingeries que enchem o carrinho.

- Essas lindas lingeries, tipo importação, se é que me entendem, na Free-shop de Guarulhos ou de qualquer outro aeroporto internacional não sairia por menos de R$ 800 cada peça.

Agora, ela passa pelo corredor, largando calcinhas no colo dos passageiros.

- Comigo, cada peça sai a apenas R$ 250 e o cliente ainda tem o direito a escolher uma peça extra. É uma oferta inacreditável para deixar a mulher linda.

Uma passageira se manifesta.

- Interessante esse conjunto.
- Devorê de seda, anti-alérgica e sensual.
- Aceita cheque-pré?
- Divido em três vezes.
- Ok, vou levar.
- Em cima de hora!

Voz na caixa de som:

“Senhores passageiros, estamos sobrevoando o aeroporto Santos Dumont. Por favor, permaneçam em seus lugares e apertem os cintos de segurança. O comandante e a tripulação agradecem a preferência nesta Ponte Aérea”.

FIM.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Personal Body Stylist, darling.

(Adriana Avellar)

Personal body stylist queidinha preferida do Mundo Ubberfashion, Margareth Bichauer recebeu e(fêmea)ra na Renew Body, a mais bombada clínica de cirurgia plástica, onde dá consultoria .

e(fêmeara) – Qual é o trabalho de um Personal Body Stylist?

Margareth Bichauer – O Personal Body Stylist é especialista em soluções corporais para mulheres que querem caber integralmente num figurino, levando em conta não só o volume do corpo ou o tamanho do manequim, mas também o formato.

e(fêmeara) – O que significa isso?

Margareth Bichauer – Significa, darling, que você vai adaptar seu corpo às tendências da moda, ao invés de adaptar as tendências da moda ao seu corpo, consegue alcançar?

e(fêmeara) – Pode dar um exemplo prático?

Margareth Bichauer – A temporada atual sugere vestido tomara-que-caia. No entanto, nem todas as mulheres ficam bem no modelo. Algumas tem peito demais; outras, de menos. Meu trabalho é fazer um estudo para que, com o mínimo de intervenções possíveis, a mulher tenha o corpo ideal para que o vestido lhe caia bem.

e(fêmeara) – Você está se referindo a intervenções cirúrgicas?

Margareth Bichauer – O menos invasiva possível. Só o suficiente para fazer o vestido cair bem. Claro que em determinados corpos são necessárias intervenções mais radicais, praticamente uma sucessão de cirurgias reparadoras. Mas, na maioria dos casos, um implante de silicone, uma lipoescultura, e às vezes até mesmo pequenos procedimentos em consultório já resolvem a questão.

e(fêmeara) – Na prática, então, suas clientes fazem cirurgia plástica para caber num vestido, é isso?

Margareth Bichauer – Caber, não, darling. Se adaptar. Para caber, bastariam alguns exercícios, uma dietinha básica ou qualquer coisa simples do gênero. Meu trabalho vai além: consiste em permitir que o corpo da mulher combine com a roupa. Uma mulher muito magra, por exemplo, não fica muito bem em estampas muito graúdas. O que fazer se a moda pede justamente isso? Eu sugiro um preenchimento corporal.

e(fêmeara) – Não seria mais fácil trocar a estampa ou usar tecidos lisos?

Margareth Bichauer – Mais fácil talvez. Mas é preciso parar de buscar o caminho mais fácil. A vida, às vezes, nos exige um caminho mais longo e difícil, mas o resultado final compensa. Precisamos sair da zona de conforto. É preciso ousar.

e(fêmeara) – Até então, os consultores de estilo adaptavam a moda ao corpo e personalidade dos clientes.

Margareth Bichauer – Isso é passado, é vintage. Agora, trend é justamente o contrário, como eu já disse. As mulheres realmente antenadas customizam o corpo, não a roupa.

e(fêmeara) – Apenas citei as consultoras de estilo como...

Margareth Bichauer - Não sou consultora de estilo, darling. Sou consultora de estilo corporal, uma profissão reconhecida internacionalmente. Não me julgue amadora. Sei perfeitamente o tamanho e o formato ideal que os seios devem ter para preencher correta e perfeitamente uma frente única.

e(fêmeara) – Para estar sempre bem vestida, a mulher deve se submeter a cirurgias a cada estação? Isso não é muito radical?

Margareth Bichauer – Você acha radical cortar o cabelo a cada dois meses, fazer luzes californianas, alisar ou encaracolar para seguir a tendência, darling? E usar esmaltes coloridos?

e(fêmeara) – A quantas cirurgias ou procedimentos você já se submeteu?

Margareth Bichauer – Nenhuma! Se eu mexer no meu corpo vou ter que tirar meu pretinho básico. Tá louca, darling?

FIM.

PS – Resposta de MB para Silvania Tatajuba que perguntou sobre a Tendência X Barriguinha.

Margareth Bichauer – Faça como eu: entra no pretinho!

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Interferência corporal: Sonho de consumo de neofashionistas

(Adriana Avellar)

Se a artista Laurie Anderson foi considerada ousada ao acoplar sensores e usar o corpo como instrumento musical (ela foi chamada, por essas e outras, de criadora dos 80), que dizer do já polêmico Paavali Tammi? O artista finlandês naturalizado húngaro e belga de coração dedicou 10 anos ao estudo de Medicina e Cirurgia Plástica, simplesmente para aprimorar a técnica de body modification. Seria ele o criador dos anos 2010, com suas Interferências Corporais?

e(fêmea)ra – O que é Interferência Corporal?

Paavali Tammi - É uma releitura do corpo, uma desconstrução e uma customização ao mesmo tempo. É o corpo também funcional esteticamente, mas revisto como uma verdadeira obra de arte, com um toque original em que o artista co-cria com a natureza. É um corpo – vivo – reestruturado artisticamente. A Interferência Corporal não é uma utilização meramente como suporte, como alguns críticos afirmam. Qualquer tatuador usa o corpo como suporte, como tela. A Interferência Corporal é um trabalho autoral e original.

e(fêmea)ra – Há quem diga que não é tão original, que você se inspira na obra de Picasso.

Paavali Tammi – Existe sim, uma influência de Picasso, a quem admiro. Mas a obra de Picasso é bidimensional. Já a minha é tridimensional. E a olho nu! Ninguém precisa de óculos para capturar a tridimensionalidade da obra. É claro que sofro influências – como todo artista. E no meu caso, não somente de outros artistas, mas também de profissionais de outras áreas, como o cirurgião plástico brasileiro Ivo Pitanguy.

e(fêmea)ra – Você diria que essa influência de segmentos diferentes torna seu trabalho “inovadoramente multimídia”, como você o classificou?

Paavali Tammi – Pode ser uma das razões, mas a minha Interferência Corporal não é simplesmente multimídia, é multiversimídia: engloba várias áreas – como arquitetura, design, cirurgia-plástica, biblioteconomia; é apresentável em qualquer espaço, intimista ou apoteótico, como bar, banheiro de avião, sambódromo. E também é dotado de mobilidade natural, é mais acessível ainda à compreensão que a arte do Vik Muniz, é uma arte que precisa de técnica sofisticada – cursei 10 anos entre a graduação em Medicina e a especialização em cirurgia plástica – mas tem uma proposta popular.

e(fêmea)ra - O local escolhido para o lançamento (a Royal Academy of Fine Arts Antwerp) não seria um tanto sofisticado para uma proposta popular?

Paavali Tammi – Há dois públicos aí: o que aprecia a obra de arte e o que se transforma na obra de arte. No lançamento, minha intenção foi atingir às pessoas que desejam se transformar numa Interferência Corporal. Você não escolhe ser vanguarda, a vanguarda é que lhe escolhe. Que pessoas antenadas seriam essas? Quem mais além de fashionistas? Por isso, escolhi um lugar que forma ícones do design, de moda. Eu mesmo sou fã e fortemente influenciado pelo estilista belga Dries Van Notten.

e(fêmea)ra – Você cita sempre o mundo fashion. A moda te inspira?

Paavali TammiEs-ti-lo me inspira. Estilistas me inspiram. Tenho uma obra – uma mulher – não fiz nada. É um nada! Apenas sulcos em sua pele. Ficou divina. Uma referência Issey Miyake. Ela não usa um vestido com tecido amassado da grife Issey Miyake, ela é o próprio amassado Issey Miyake. Compreende?

e(fêmea)ra – Como você criou o conceito Interferência Corporal?

Paavali Tammi –Tomei como base as interferências urbanas de vários artistas plásticos. Pensei: por que não intervir no próprio corpo? A partir daí, vi Picasso, o mestre maior, diante de mim. Imagens de corpos se fragmentavam em meus sonhos.

e(fêmea)ra – Você pode dar exemplo de funcionalidade de alguma obra sua?

Paavali Tammi - A obra Mulher De Boca Na Testa é um exemplo. Aquele beijo falso-respeitoso, na testa, que um homem dá numa mulher que ele deseja. Vamos assumir! O que ele quer é outra coisa! Quer algo mais funcional neste momento que uma boca na testa? Há outras. Eu diria todas. As obras Narizes, De Ponta Cabeça, Sorriso do Gato De Alice, Seios Nas Costas... Tudo isso é funcional.

e(fêmea)ra – Você poderia explicar a funcionalidade de seios nas costas?

Paavali Tammi – (risos) Esse é meu primeiro trabalho. Sempre acabo voltando a ele. É um insight de quando iniciei o trabalho de Body Modification – que foi como comecei minha carreira. Inspirado num baile de formatura de escola americana. Eu sentia que havia algo errado no corpo feminino. Claro! Os peitos deviam ficar nas costas, para qualquer menino poder apalpá-los ao dançar colado com a garota de seus sonhos! Atualmente soa desnecessário, mas ainda assim é funcional. E excitante.

FIM.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Privacidade

(Adriana Avellar)

A velha, toda excitada. Novos moradores no prédio. Um jovem casal. Apartamento vizinho. Enfim, diversão. Copo emborcado colado na parede. Ouvido colado no copo. Som de TV. Jogo. Droga.
Seu passatempo predileto: ouvir conversas, decifrar sons, desvendar intimidades, reviver seu próprio passado. Passado remoto. 
Do outro lado da parede, apenas um jogo de futebol na TV.

Mulher – Amo-or.

E a velha na torcida.

Mulher - Amo-or. Tô falando com você.
Homem - Hum?
Mulher - Ah, larga esse jogo. Olha pra mim.
Homem - Hum?
Mulher – Sabe aquele negócio que você pediu?
Homem- Ahã!!!
Mulher – Eu topo!
Homem – Aããããããaããããã?!?
Mulher - Eu topo!
Homem - Sério?!?!
Mulher – Sério. Mas tem que ser agora.
Homem - Na hora do jogo?
Mulher -  Aproveita que eu tô animada.
Homem – Agora?
Mulher – Se você acha esse jogo, que nem é do seu time, mais importante.
Homem – Não é por isso. É por causa da hora.
Mulher – Tem que ter hora certa?
Homem – Se a gente fizer muito barulho, os vizinhos vão ouvir!
Mulher – E daí, se ouvir?
Homem – Outro dia reclamaram com o síndico do casal vizinho aí de cima.
Mulher - Nós acabamos de nos mudar. Você nem conhece vizinho nenhum. Como é que sabe disso?
Homem - Ouvi no elevador.
Mulher - Sei... Você prefere o jogo, né?
Homem - Não é isso.
Mulher - O que é então?
Homem - É que aqui ao lado mora uma senhora. Ela pode ficar incomodada.

Se a velha pudesse, gritaria: "incomodada ficava a sua avó!" Mas o anonimato é o segredo de sua diversão.

Mulher - Você acha que ela vai ouvir alguma coisa?
Homem - Não sei. Como vou saber?
Mulher - A gente faz baixinho. E qualquer coisa, põe uma toalha pra abafar o som. Não é você mesmo que diz que a gente deve fazer as coisas na hora que dá vontade?
Homem – Olha, você está me instigando! Você pensou realmente nisso? Tá decidida?

E a velha: "Maricas"

Mulher – O que você acha?
Homem – Você me instiga e depois muda de idéia.
Mulher – Prometo que vou até o fim.
Homem – Tem certeza?
Mulher – Nossa, anjo, você não acredita em mim?
Homem – Eu acredito, mas você mudar de idéia não custa. Depois eu que fico aí, frustrado.

E a velha: "age, rapaz!"

Mulher – Nossa, mas o mundo não vai acabar por isso.
Homem – Tá vendo? Já to percebendo sua intenção.
Mulher – Juro que vou até o fim. Olha, vou beijar os dedos.
Homem – Então tá. Vamos rápido antes que você mude de idéia.
Mulher – Rápido também não, né? Já que eu deixei. Vamos com calma, pra fazer direito.
Homem – Tudo bem. Com calma. Vem cá. Bem devagarinho. Vou lá pegar uns acessórios.

E a velha, expectativa.

Mulher – Já trouxe tudo. Aqui. Não é isso?
Homem – Hum, muito bem. Você tá entendendo do assunto.
Mulher – Aprendi com você.
Homem – Então eu sou seu professor, é?
Mulher – É. Meu lindo professor. Dessas coisas, claro.
Homem – Lógico. Tudo o mais quem ensina aqui é você.
Mulher – Então, pega aqui.
Homem – Onde?

E a velha: "e ele não sabe onde se pega?, ô raios!"

Mulher – Mais ou menos aqui.
Homem – Mais ou menos?
Mulher – Você vai tateando, e eu vou dizendo, até encontrar o ponto.
Homem – Pronto. Lá vem você com essa história de ponto.
Mulher – Assim você me magoa.
Homem – Eu te magoo? Você vive dando ordens! Até parece que eu não entendo do assunto!
Mulher – Também não precisa ficar nervoso!

E a velha: "calma, moço!"

Homem – Eu não tô nervoso!
Mulher – Então me dá um beijinho para provar que não tá nervoso.
Homem – schuuuuuuuuuuf. Então, onde é o ponto?
Mulher – É bem aqui, ó, no meinho.
Homem – Aqui?
Mulher – Só um pouquinho para o lado.
Homem – Assim?
Mulher – Não do lado de lá.
Homem – Lá onde?
Mulher – Lá onde, como assim?
Homem – Esquerda ou direita?

E a velha: "não sabe tatear não, molenga?"

Mulher – Não sei.
Homem – Como não sabe?
Mulher - Depende do ponto de vista.
Homem – Ahn?
Mulher – O meu ou o seu?
Homem – Ahn?
Mulher – Você está de frente pra mim. A minha direita é sua esquerda. Você quer qual?
Homem – O seu.
Mulher – Mas em relação à sua mão ou ao meu lado direito ou esquerdo?
Homem – Não acredito!
Mulher – Tá vendo? Você se irrita a toa! E olha que eu estou atendendo um pedido seu! Ficou mais de um mês só falando nisso!

E a velha, impaciente: "mas nem eu e o falecido!"

Homem – Tá bem. Quando você falar pra ir pra esquerda é para o lado do seu coração, tudo bem?
Mulher – Tudo bem. Parece até que eu sou burra.
Homem – Burra não. Confusa.
Mulher – Daqui a pouco eu mudo de idéia.
Homem – O que não ia ser novidade. Você vive mudando de idéia!
Mulher – Tá vendo? Você não me entende mesmo!

E a velha: "nessa parte tá igual".

Homem – Não precisa fazer drama. Tá, pra que lado?
Mulher – Pra direita. Pra minha direita.
Homem – Aqui?
Mulher - Foi muito. Agora para a esquerda.
Homem – Assim?
Mulher – Um pouco pra cima. Não, agora pra baixo. Tem que ser bem o meinho. Só mais um pouquinho pra esquerda. Direita. Não, baixo. Não falei diagonal, falei pra baixo. Aí você está pegando uma diagonal ao contrário. Ah!!!!!!!!!!
Homem – Ah, o quê?
Mulher – Tô te indicando tudo direito, mas você não encontra o ponto exato! Não consegue!

E a velha: "Esse aí nem com mapa!"

Homem – Eu não consigo? Agora a culpa é minha!
Mulher – Não é questão de culpado. Você sempre quer encontrar um culpado! Eu estou falando direitinho onde é. Milímetro a milímetro. É só ter sensibilidade e seguir o que eu estou dizendo.
Homem - Você sempre quer que eu siga o que você está dizendo!
Mulher – Mas você mesmo tinha dito pra eu indicar!
Homem – É só não ficar me pressionando.
Mulher – Eu só quis ajudar.
Homem – Também não precisa fazer essa cara.
Mulher – Eu não tô fazendo cara nenhuma.
Homem – Você não vai chorar por isso.

E a velha: "pronto, melou!"
Mulher – (...).
Homem – Tava bom demais pra ser verdade.
Mulher – Tava bom mesmo? Sério?
Homem – Claro, amorzinho, você tava mostrando o ponto direitinho. E eu quero muito isso.

E a velha: "então vai, filho, não desiste".

Mulher – Mas você só fica criticando...
Homem – Tá bom. Eu não falo nada. Eu deixo você guiar. Você faz o que quiser. Eu faço o que você quiser. Vamos de novo?

E a velha: "Isso, meu filho"!

Mulher – Agora perdi o clima...
Homem – Perdeu o clima?!? Você me faz largar o jogo, chegar até aqui pra me dizer que perdeu o clima?!?
Mulher – É isso mesmo. Perdi o clima.
Homem – Eu nem tava a fim! Foi você quem insistiu. E agora vem dizer que perdeu o clima?!? Olha como eu tô todo suado desse sobe e desce.
Mulher – Toma um banho!

E a velha: "coitada"!

Homem - Você tem noção?!? Nós estamos há duas horas nessa! Por mim, podia ir de qualquer maneira, que tava bom. Mas você não! Tem que encontrar o ponto exato! Eu estou aqui há duas horas seguindo suas instruções pra encontrar esse raio desse ponto! Exatamente “O Ponto”!
Mulher – Você tá nervoso?
Homem – O que você acha?
Mulher – Vem cá. Deixa eu te dar um beijinho. Acho que isso não foi uma boa idéia. Vamos namorar um pouquinho.Vamos deixar pra pregar esse quadro dos 100 anos do Corínthians na parede outro dia.

E a velha?

FIM

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Moda Beleza Juventude

(Adriana Avellar)

Enquanto aguardam, folheiam revistas. Duas amigas de longa data. De longa data, melhor não dizer. Duas amigas que se conhecem bem. Clarice e Beatriz.

– Ele é bom mesmo? – pergunta Beatriz, mais ansiosa.
– Maravilhoso! É super in. Clientela antenada. – responde Clarice, com a tranquilidade de quem tem mais experiência no assunto.
– Tomara que seja mesmo. Já perdi as contas de quantas vezes tive que trocar. E o pior é que quando isso acontece, eles ficam com raiva.
– É mesmo. Outro dia, encontrei um ex numa festa. Ele percebeu.
– Mas também você com esse visual totalmente... diferente!
– Pensei que ele fosse me matar.
– Diante de você assim, era mais fácil ele se matar! E esse novo aí? É confiável mesmo? Só vim porque você insistiu.
– Tá sempre pesquisando. Conhece todos os lançamentos europeus e americanos. E ainda inova. Você pode encomendar a coleção completa. O bacana é que ele cria de acordo com sua personalidade: te fotografa inteira e faz um monte de perguntas. Quer saber tudo sobre você.
– Tudo?!? – pergunta Beatriz com um leve, mas indisfarçável tom de pânico.
– A idade, talvez ele não pergunte - apressa-se a amiga. - Ele diz que o importante é a idade da imagem.
– Ele é dos meus! Sem apego à cronologia - suspira a outra, num claro alívio.
– Mas ele também aceita sugestões. Pode escolher idéias. Essa revista aqui é bárbara para isso. Vê essa foto!
– Quem é essa aqui, a terceira à direita?
– Essa não! Essa mulher é cafooooona.
– Cafona eu nem digo. Só acho que tá acabada!
– Como não é cafona? Olha isso aqui!
– Isso aí é o cúmulo da vanguarda: um vestido do Alexandre Herchcovitch. Da nova coleção. Você não é fiel à moda? Como não sabe disso?
– Quem disse que eu tô falando do vestido?
– Tá falando de quê, então?
– Dos peitos, ora.
– Mas eles nem estão caídos!
– Ah, estão caídos sim. Caíram de moda faz tempo. Esse peito melancia não se usa deste a estação retrasada.
– Pra mim, se estão firmes...
– Firmes? Que adianta um peito firme num formato tão antigo? Nem é releitura retrô. Parece de brechó! Ela já tinha que ter trocado a prótese!
– Ela não usa prótese. Dizem que nunca fez sequer uma única cirurgia plástica. Olha as rugas, que horror!
– Achei que era tendência.
– Deixou assim de propósito. Nada de lifting nem botox nem bioplastia. E sabe qual o maior sonho dela? Posar para as lentes do André Gardenberg!
– É algum fotógrafo de moda que eu não conheço?
– Ele gosta de registrar a realidade. Tipo o Sebastião Salgado. Só que ao invés de clicar pobre, ele fotografa rugas. O livro dele se chama “Arquitetura do Tempo”, com um monte de gente chique exibindo rugas: Fernanda Montenegro, Dorival Caymmi, Chico Buarque. Até a Malu Mader.
– Ruga está na moda? Será que eu vou ficar bem com rugas de expressão aqui na testa? Ou é melhor pés-de-galinha?
– Tá louca?!?
– Se for moda...
– Velhice nunca vai estar na moda! Eu fujo de seguro de carro com desconto progressivo pela idade pra ninguém me perguntar de quanto é o desconto e, com isso, calcular minha idade.
– Olha esse nariz aqui, que show!
– Vai mudar o nariz também?
– Vou ter que mudar tudo! Não quero nenhum vestígio deste visual.
– Também, ô louca, radicalizou!
– Mas enquanto estava na moda, aproveitei bastante.
– Mas não tem nem seis meses que você virou homem!
– Virei homem não, aderi ao visual andrógino.
– E agora vai ser obrigada a se virar pelo avesso de novo.
– Claro. Agora, o chique é um corpo de formas ultra-femininas, com curvas generosas e um toque renascentista. Vou pedir um discreto ar vintage: seios de pera, bumbum redondo, sorriso de Monalisa, em lábios de Angelina Jolie.
– A boca de Angelina Jolie está de volta?
– Claro! E adotar criança africana também.
– Mas não tem um ano, a moda era adotar meninas chinesas, que os pais verdadeiros abandonavam porque queriam menino.
– Mas a China já inspira outra moda: pés pequenos.
– Nossa, mas justo agora que você colocou essa prótese pra aumentar o tamanho do pé, quando virou homem..., quer dizer, adotou o visual andrógino.
– Fazer o quê? A moda nos exige certo sacrifício.
– A juventude é que nos exige sacrifícios! O que eu gostei da atual tendência é a pele de porcelana. Rejuvenesce e a gente fica parecendo uma boneca. Essa mulher aqui, por exemplo, sempre jovem!
– Também, o marido vive fazendo lipo-escultura nela! Deve ser bárbaro ser mulher de cirurgião plástico.
– É o mesmo que se casar com a fórmula da eterna juventude.
– Ela é o cartão de visitas do marido. Já pensou que máximo? Quer dizer, desde que ele não seja jornalista de escândalos... “Essa aqui é minha primeira fofoca. Transava pelada numa praia da Espanha”.
– E se for advogado então? Essa aqui é meu primeiro processo. Ia pegar 30 anos, mas reduzi para pena alternativa. Serviços comunitários.
– Mas quando se é casada com um cirurgião...
– Plástico. Porque se for de coração, não vale a pena. Nem de cabeça.
– Mas se o marido é cirurgião plástico... Olha essa foto aqui. Você podia experimentar algo assim, uma coisa mais radical, exuberante, vanguarda.
– Querida, eu sou básica. Apenas odeio pelanca. Deviam lançar uma taxa pra quem abana pelanca quando dá tchau. Eu sempre...

O assunto é interrompido pela chegada do cirurgião, que gentilmente vem recebê-las na antessala. Cumprimentos e apresentações depois, estão os três no consultório, com a amiga mais experiente avaliando o projeto de sua cirurgia, uma mudança radical. Ela mal consegue disfarçar a ansiedade, mas algo lhe parece familiar.
– Tem certeza que este estudo é individual? - pergunta ao especialista.
– Evidentemente! - responde ele, quase impaciente.
– Não tirou de nenhuma revista?
– Isso é uma ofensa.
- Eu detestaria encontrar uma mulher numa festa com o rosto igual ao meu.
- Eu só trabalho com Haute Chirurgie. Exclusividade absoluta! – ressente-se o cirurgião..
– Mas esse rosto não me é estranho.
– Deixa eu ver, amiga.

Agora é Beatriz quem analisa o projeto. Vira daqui, vira dali.

– Eu também conheço esse rosto! Acho que tem umas rugas a mais em relação ao original.
– Ruga é trend, minha cara! – retruca o médico.
- Não consigo lembrar...
– Faça um esforço! Onde você viu esse rosto e esse corpo? – implora Clarice.– Era um pouco mais novo. O rosto, com certeza.
– Ok, mas de onde você o conhece? Responde por favor! – desespera-se.
– Da foto de nossa formatura!, grita, pelo que ela chamaria epifania. Esse era o seu visual nos anos 90, antes da primeira cirurgia plástica!

FIM