quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Comida Honesta

(Adriana Avellar)

Estavam perdidos. Desceram mais uma vez na estação errada. Era a terceira. A fome aumentando e nada de encontrar o famoso centro gastronômico. Resolveram procurar restaurante por ali mesmo. Simplicidade. Quem sabe uma comida honesta, uma surpresa agradável. Andaram muito.E mais ainda. Encontraram um que consideraram simpático. Não se sabe se pela fome ou se pela varandinha, pelas mesas com toalhas vermelhas ou pelo “desde 1948” do letreiro.
O garçom, um senhor idoso, cabelos de neve, com jeito tradicional, paletó branco e gravata borboleta, estava na porta se despedindo de uma mulher.


– Tudo bem, Conceição. Pode ir tranqüila e deixa que eu me viro por aqui, se precisar. Bom apetite.

Ao vê-los, o garçom inclina-se, numa afetada solicitude, abrindo espaço para entrarem. Logo depois, está com um bloco, junto à mesa dos seis. Três casais.

– Bom dia. Ernesto, ao dispor dos senhores. Peço desculpas - diz, numa linguagem tão afetada e falseada quanto a postura - Estava me despedindo da... - deixa transparecer algum prazer em dizer isso – ...da assistente da cozinha.

– Assistente de cozinha? – estranha o mais alto do grupo – Achei que o senhor tivesse dito “bom apetite”.

– E disse. Ela está indo almoçar – responde o garçom, mantendo a naturalidade, enquanto distribui cardápios para cada um da mesa, mas enfatizando “indo almoçar”.

– Indo almoçar? Mas ela saiu do restaurante!

– E-xa-ta-men-te – fala, colocando coberturas de papel sobre as toalhas.

– Não me diga! Os funcionários não podem comer da própria comida? – surpreende-se uma das mulheres do grupo.

– Poder, pode. Mas ela detesta comida requentada – há um claro tom de deboche.
Silêncio. Todos desviam a atenção de seus cardápios. Teriam entendido direito? O garçom continua, com naturalidade.

– Na primeira ou na segunda vez até que come. Mas ela hoje não trouxe marmita.

– A assistente de cozinha traz marmita de casa?, espanta-se a loura.

– Nem sempre. Às vezes, a gente reparte uma quentinha. Hehehe.

O garçom estaria ironizando?

– Quentinha?!?, quase berra o marido da loura.

– Nada como uma comida fresquinha, feita na hora – diz o garçom, ao terminar de colocar a última toalha de papel. Rápido, sem tempo de questionamentos, se posta ereto, ao lado da mesa, com bloco e caneta.

– Já escolheram?

Há um ligeiro mal estar. Troca de olhares. Um riso nervoso aqui e ali. Seria algum tipo de brincadeira? O garçom é bem idoso. Parece sério.

– Traz uma gelada, enquanto a gente decide – diz o mais velho da mesa, para ganhar tempo.
– Uma gelada - repete o garçom, sussurrando enquanto anota – Coitados, vão entrar numa fria.

– Não entendi?

– Só temos chope.

– Seis.

O garçom faz menção de sair, mas dá meia volta.

– O senhor me desculpe. É que simpatizei com vocês.

O garçom se inclina, aproximando-se ao máximo do ouvido do homem mais velho.

- Sabe como é. Final de barril. O chope tá saindo que é espuma pura - diz com os olhos fixos no homem do caixa, um homem com cara de quem, literalmente, comeu e não gostou. – O patrão não deixou trocar. Se eu fosse vocês, escolhia outra bebida – sussurra e volta à postura ereta inicial.
O freguês olha de novo o cardápio, faz sinal para os amigos na mesa, discretamente. Olha para o homem no caixa e fala alto.

– Mudamos de idéia. Quem vai de caipirinha?

O garçom faz cara assustada, tentando avisar algo em gestos contidos.

– A caipirinha é feita com a caninha da boa, compreende? – fala alto, mas logo abaixa-se e sussurra, com uma risadinha cúmplice, sem tirar os olhos do homem do caixa. – Mas o limão passa de copo em copo. O senhor vai ver: parece bebum, chega a tá inchado!

– Água. Água para todos – adianta-se uma das mulheres.

– Com gás, senhora, com gás - fala alto para chamar a atenção do dono no caixa. –É só um tiquinho mais cara, mas é infinitamente mais gostosa - baixinho: e garantida.

– Ótimo! Água com gás para seis!

O garçom sai e volta com a bandeja, garrafas de água e copos. Faz questão de abrir as garrafas na presença de todos, exagerando no gesto, como quem quer dar garantia de inviolabilidade. Agora ele está mais sorridente. Sente que foi instaurada a confiança profissional.

– Essa empada de palmito... – diz a acompanhante do homem mais velho – a massa é daquela que derrete na boca?

– Derrete! - o garçom abaixa-se, satisfeito com o que vai revelar. – Já deve até estar derretida, com esse calor! Ficou muito tempo fora da geladeira - completa sussurrando.

– O senhor quer dizer que a empada tá velha? – pergunta a mulher.
O garçom se apavora, olha para o caixa, percebe que o dono continua distraído. Relaxa.

– Por favor, a senhora não vai me comprometer com o patrão! – pisca o olho.
– Pode falar a verdade – incentiva o novo cliente amigo.

– Velha, eu não diria: chamar uma senhora de velha é falta de respeito – diz, com um riso debochado cheio de confiança. – Eu diria até gatosa, porque ela é bem simpática. hehehe. Ainda vai dar um caldo – ri de novo, gostando da própria piada. – Se a senhora passar aqui amanhã vai poder experimentar. Hehehe. O caldo feito com a empada encalhada. hehehe.

– Eles fazem caldo de empada? – pergunta o cliente amigo, em segredo também.
– De empada só não. De tudo que não tem saída e fica na geladeira. Vou dizer uma coisa pra vocês: o arroz tá fresquinho, isso eu garanto. Pode pedir uma saladinha de tomate e cebola; não pede alface não, que só jogam na água com vinagre; e um bife mal passado com batata frita.

–Se o senhor garante, pode trazer! – sorri, cúmplice, o mais velho da mesa.
O garçom sai para providenciar. Mas agora, ele já é atração. Basta passar perto da mesa, para alguém chamar. Todos querem experimentar sua, digamos, espontaneidade.

– O pastel de carne é fresco?

– Fresco? O pastel é feito de bofe. Hehehehe. Não tem frescura com ele não!

– E o picadinho à moda, como é feito?

– Ih, isso aí é sobra de bife!

– E o escondidinho de carne seca?

– Esse é sincero. hehehe. A carne seca fica escondida. Tem painco, conhece? Não sai de jeito nenhum! hehehe

– E de sobremesa, seu Ernesto?

– Melhor fruta. O abacaxi tá bom. Pode comer, que eu garanto.

– Abacaxi para seis!

– Vocês já devem até cantar parabéns de aniversário das comidas, hein? - exagera o mais jovem da mesa.

– O quê? - ri, gostosamente, apontando para um garçom que passa com bandeja. – Aquela ali, por exemplo, a Margarida.

– Margarida? Mas é um homem!

– Tô falando da galinha. Tá tanto tempo aqui que hoje demos um nome pra ela. Hehehe. Já foi assada, depois virou picadinho, depois virou estrogonofe, agora é caldo! Hehehe.

– Fala sério, o senhor está de aviso prévio?

– Não demora muito ficar. Mas eu posso me aposentar. Estou aqui há mais de 40 anos! Esse restaurante aqui era bom. Vinha gente famosa. Depois que o velho dono morreu, acabou! Esse menino aí – mostra o homem do caixa, nem tão menino assim. – Esse não entende de nada. A comida daqui era bem honesta. Agora honesto aqui é só os garçons!

FIM.

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