quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Prova de Gramática - Parte 03

(Adriana Avellar)
Hoje é o pior dia de todos os meus doze anos. Tirei 2,8 na Prova de Gramática e agora estou sendo zuada pela Áurea, a nerd que senta na carteira ao lado, que , desconfio está namorando o Roberto, o garoto mais bonito da sala.
-          Quanto você tirou? – a Áurea me pergunta.
-          Ah, eu tirei uma nota – respondo, sub-repticiamente, para usar uma expressão nova que aprendi ontem num daqueles livros policiais de banca que a minha mãe gosta de ler. Os escritores policiais, acho, adoram sub-repticiamente.
-          É claro que foi uma nota, né? Mas de quanto foi essa nota? – a Áurea frisa e chama a atenção de todos os que estão por perto. Fico em silêncio.
-          Não quer dizer é porque tirou uma nota baixa – ri a debochada.
-          Eu posso ter tirado uma nota maior que a sua! – quase berro, fingindo rir.
-          A minha nota é dez! – ri a Áurea, exibindo a prova com um enorme Parabéns da Dona Gerúndia.
Todos estão olhando pra mim. Meu rosto está quente, eu devo estar parecendo um tomate.
-          E a dela é vinte! – diz Roberto, o garoto mais lindo da sala, exibindo uma nota amarelinha de vinte reais – Eu pedi emprestado mas vou devolver – completa, mais debochado ainda que vinte áureas juntas.
Todos riem. Roberto estende a mão e eu pego a nota. Ele pisca o olho pra mim. Agora eu devo parecer uma salada de tomate com pimenta calabresa. Mas ainda consigo sorrir. Áurea, que estava em pé me desafiando, senta-se, sem graça. Ninguém tira da minha cabeça que essa garota tem uma quedinha pelo Roberto, meu herói que me salvou a vida hoje. Eu até achava que ele tava namorando essa metida. Agora sei que não.
-          Depois da aula me devolve essa nota que é pra eu comprar um livro em inglês, hein? – Roberto fala quase sussurrando.
Eu respondo com um sorriso. Livro em inglês? Ele é poliglota! E além de tudo, freqüenta livraria. Eu tinha certeza de que existe alma gêmea. Hoje é o melhor dia de todos os meus doze anos.
Continua.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Prova de Gramática - Parte 2

(Adriana Avellar)
Não sei quem foi que inventou as regras gramaticais. Coitado do Machado de Assis. Como será que ele era obrigado a usar as regras gramaticais? Talvez o dono da editora, que era o chefe dele, encomendasse: quero um livro que contenha vinte e oito hipérboles, três pleonasmos, quinze metáforas, trinta e duas figuras de linguagem a escolher, 545 orações coordenadas adversativas ou subordinadas conformativas, consecutivas ou proporcionais, 48 locuções conjuntivas conclusivas ou explicativas. Tem que ter também 52 tipos de o que o autor quer dizer para as provas de interpretação de texto. Ah, e antes que eu me esqueça: precisa também ter uma história.
Encontre o sujeito na frase. Ei, peraí, isso é uma prova de português ou um jogo de detetive? O sujeito não está no hall, não está no escritório, não está no salão de jogos nem no de festas, nem na sala de música ou de jantar ou de estar. Estaria o sujeito na cozinha? Não, o sujeito pode ter se escondido na biblioteca dentro de algum livro daquelas coleções enormes de capa dura vermelha. Se eles tivessem miolo. Parece incrível, não é? Mas tem gente que compra capa de livro a metro pra enfeitar a estante.
Foco na prova. Foco na prova. Retire do texto duas palavras com derivação parassintética. Dê o aumentativo sintético e analítico dos substantivos grifados. Sublinhe no texto três substantivos abstratos e um composto. Dê dois exemplos de superlativo absoluto sintético. Identifique o agente da passiva no quarto parágrafo. O que é siglonimização? Como é que se conjuga o verbo danar na primeira pessoa do singular no modo imperativo? Não. Essa última pergunta é minha mesmo. Vou me dar mal e ficar em recuperação.
-          Tempo esgotado.  Entreguem a prova.  Silêncio! Não quero ouvir um pio!
Esse é o momento martírio. Todo mundo calado, sem poder dar um pio, enquanto Dona Gerúndia silenciosamente corrige as provas. A única vantagem é que ela não pode impedir ninguém de pensar. Porque o resto, ela proíbe. Depois ela chama um a um e dá a sentença. E a minhaé: nada de querer se escritora. Preciso encontrar uma profissão bem longe dos livros. Talvez eu trabalhe numa loja de departamentos. Vou vender eletrodomésticos. Não! Lá, tem manual de instruções. Não deixa de ser uma espécie de livro.
-          Carlos Heitor, venha buscar a prova.
Pronto. Começou a distribuição. Agora ela entrega um a um e quem tem dúvida, levanta a mão que ela vai até a carteira e tira a dúvida, baixando ainda mais a nota. Ela sempre encontra um jeito de baixar ainda mais a nota. Por isso, eu sempre fico calada.
-          Luís Fernando! Rubem! Gabriel! Lígia!
Ai, Deus, quando for minha vez, faça com que a Dona Gerúndia não conte certo meus erros. As provas deviam se apenas uma redação. Belo final e ótimo começo. O corpo também está muito bom. O professor de redação sempre me avalia assim. Eu posso até não saber o termo técnico do substantivo, mas sei perfeitamente como usá-lo. Eu também sei usar os acentos. Eu posso até nem saber exatamente o porquê deles estarem ali, mas sei que é onde devem estar. Canso de ver as palavras escritas nos livros.
Já pensou se a Dona Gerúndia fosse delegada? E resolvesse obrigar todo mundo a decorar as leis? E aí, toda esquina ia ter um guarda. Documentos, por favor, cidadão. E o cidadão ia mostrar os documentos e o guarda ia revistar e o cidadão não estaria armado e por que o senhor não está armado? E o cidadão ia dizer não tenho arma, e o guarda ia perguntar por quê, qual o número da lei que proíbe o cidadão de andar armado e exatamente o que diz a lei? E se o cidadão não soubesse responder, cana! E ele ia aparecer escondendo o rosto naqueles programas de TV que dizem, cadeia nele! E a dona Gerúndia ia dar entrevista e dizer que quem não conhece todas as leis municipais, estaduais e federais não pode ter a ousadia que querer sair de casa, cidadão!
Continua.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Prova de Gramática - Parte 1

(Adriana Avellar)
Sempre gostei das proparoxítonas. São as palavras mais simpáticas da língua portuguesa. Toda véspera de prova sonho encontrá-las, uma atrás da outra, na questão sobre acentuação. Sempre fui péssima - péssima é proparoxítona – sempre fui péssima em decorar regras gramaticais. Acentuam-se todas as palavras paroxítonas terminadas em... terminadas em quê mesmo, hein? E as oxítonas? Quando é que precisam ser acentuadas? Ai, meu Deus, não sei! Eu, em pânico - para usar outra proparoxítona - eu, em pânico. Não posso tirar nota baixa em português.
Acentuam-se todas as palavras proparoxítonas, não é o máximo? Não importa se elas são terminadas em “r” ou em “s” ou qualquer outra letra; se tem hiato, ditongo ou dígrafo. Já oxítonas e paroxítonas enganam a gente. Se alguém perguntar se oxítona é proparoxítona, qual a resposta certa? Sim. Mas não também está correto. Confuso, não? Pois bem, oxítona devia ser oxitoná e paroxítona devia ser paroxitôna. Mas não são. Por isso eu gosto das proparoxítonas, elas nunca traem!
Ai, meu Deus, todo dia de prova eu fico assim. Eu não devia ficar tão nervosa, eu não fiz cola, não abri o livro debaixo da carteira, nem espichei o olho para a prova da Áurea, a nerd que senta na carteira ao lado. Mas também, olha só o jeito com que ela esconde a prova! Ela praticamente deita em cima do papel! E também Dona Gerúndia dá uma prova diferente para cada fila. Vai ver ela pensa que eu vou colar. Não. Colar, eu não vou. Jamais correria o risco de dar a ela o gostinho de me pegar numa errada. Pode me revistar se quiser. Vem ela. Fez bem. Passou direto. Por enquanto escapei, mas eu preciso saber responder a essa questão.
Numere a segunda coluna de acordo com a primeira. Ai, não. Esse negócio de numerar só devia cair em prova de matemática. Essa confusão de português com matemática me dá nos nervos. Acho que vou ter uma convulsão! Calma. Não precisa ficar tão nervosa. Tente fazer a questão. Na pior das hipóteses é só colocar os números em qualquer ordem. Você terá mais chances que jogar na sena. São dez sentenças numeradas na esquerda correspondendo a dez respostas na direita. É só combinar 01 com d, 02 com f, 03 com h etc. Tenta. Tenta. Nota vermelha é que não! Eu devia ter estudado mais, decorado mais, prestado mais atenção na aula, devia ter me distraído menos, viajado menos, errado menos...

-          Ricardo, entregue a prova e pode sair de sala. Vá já para a direção!

Jesus! Isso é vociferar. Eu sempre quis saber o que era vociferar. Descobri na primeira vez que dona Gerúndia botou um aluno pra fora de sala. Isso é vociferar! Ela só não pode vociferar comigo de novo. Da última vez foi pra dizer que quem não conhece as regras gramaticais não pode ter a ousadia de querer escrever, menina!!! Esse escândalo todo porque eu falei, quando ela perguntou, que eu queria ser escritora. Ela pensou que eu estava debochando, mas eu falava a sério.
Até antes dessa vociferação, eu pensava que talvez pudesse escrever alguma coisa. Sem compromisso. Uma carta pra Bia, minha melhor amiga. E depois no futuro, ela iria vender no leilão da Sothersby’s, por um leiloeiro inglês. Não! É melhor um leiloeiro francês pra dar mais sonoridade, charme. Pois ela iria vender a carta e comprar uma linda casa. E um carro. E muita bala azedinha. E o William Bonner iria falar logo no início do Jornal Nacional “primeiro manuscrito original de Nobel de Literatura arrematado por 300 mil dólares”.
Não! Acho que eu não quero ser Nobel de Literatura. Acho legal ler meu nome nos jornais, mas prefiro entrar na lista dos mais vendidos. É, porque minha tia Iolanda disse que eu tenho que escolher. Ou escrever best-sellers ou ser a queridinha dos intelectuais. Parece que não existem intelectuais suficientes no mundo para colocar um livro na lista dos mais vendidos. Eu já tinha notado isso no caderno de livros do Globo e no Idéias do Jornal do Brasil. Eles sempre perguntam qual livro o intelectual está lendo. É sempre um que eu nunca ouvi falar e está sempre fora da relação dos campeões de venda. Às vezes eles perguntam que livro eles recomendam, mas pelo visto ninguém dá bola pra recomendação deles. Se não, na semana seguinte o recomendado estaria na lista dos mais vendidos, não é mesmo? Eu queria poder não dar bola pras recomendações da Dona Gerúndia. Acho que vou ficar em recuperação em português.
Que lindo! Um fragmento de texto. É assim que Dona Gerúndia chama as pequenas histórias que ela usa pra análise sintática. Análise sintática! Se não fosse uma expressão com duas proparoxítonas deveria ser banida da língua portuguesa. Como é que eu vou saber que figura de linguagem o autor usou no segundo parágrafo? Eu não moro com ele, eu nem o conheço, meu Deus, como é que eu vou saber? A única coisa que sei é que saber para mim agora é verbo intransitivo. Eu preciso saber. Não interessa o quê. Vou passar direto para as questões de acentuação. Sempre tem questão de acentuação nas provas da Dona Gerúndia.
Não acredito! Nenhuma proparoxítona. Dona Gerúndia é má. Ela é muito má. Como é que pode uma prova de gramática sem pergunta envolvendo proparoxítonas? É uma injustiça! Elas são o máximo, elas são charmosas e muito chiques. E o som? Não é fantástico? Véspera, trágico, médico, lívido, preâmbulo, sintomático, enigmático, pneumático... É só enfileirá-las. As proparoxítonas já nasceram poesia. 
Continua.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Assim já era, assim já é

(Ligineia Avellar)


Fatos reais. De ontem e de hoje.

Cena 01: Casa da minha mãe. Primavera de 1965. Minha mãe costura um vestido branco e nossa vizinha amiga faz companhia no maior bate papo. Assunto: vida dos outros, é claro, desta vez da cliente do vestido de noiva.

Vizinha:
- Mas porque ela quer vestido de noiva?
Mãe:
É para tirar uma foto e mandar pros parentes no interior. Cê sabe né ela é de Minas e os parentes não sabem da história.
Vizinha:
Também com 23 anos e encalhada... Foi arranjar esse velho ...Cê sabia que ele tem cinqüenta anos???? É fiscal da Receita Federal.
Mãe:
Mas pelo que estou sabendo ele é casado. Ela me pediu para colocar um véu. Isso eu não faço, que não vou sustentar mentira dos outros. Mas o vestido branco, tudo bem.
Vizinha:
É, ele é casado sim. Mas ele disse pra ela que a mulher dele tem problema. Tem muito tempo que eles não fazem aquele negócio...
Mãe:
Cê boba. Todo homem quando quer mijar fora do pinico, inventa essa história. A desculpa é sempre essa. Eu sei, já ouvi esse papo ó...
Vizinha:
Mas ela tá numa vida boa danada... Até saiu do trabalho...Ele dá tudo pra ela. Comprou uma frigidaire novinha, branquinha, linda. E a Telefunken? Não dá nem pra comentar, que vão dizer que tô com inveja. Tela grande, gabinete, a mais cara da loja. E o sofá? Tu acredita que ela escolheu da Gelli e ele deu pra ela? Tudo do bom e do melhor.
Mãe:
Mas e a mulher dele? Já pensou se ela ficar sabendo?
Vizinha:
Ela desconfia. Ele diz que está fazendo hora extra.Ela não caiu nessa não, mas ficou quietinha. Inclusive fiquei sabendo que ela falou, que se ele sempre manter o conforto que ela sempre teve, viagem pra Guarapari todo ano, modista todo mês, e troca dos móveis no Natal, e desde que não “procure” ela de noite, ela finge que não sabe de nada...

Cena 2: Confecção de roupas. Hora do almoço. Primavera de 2010. Marielza e Turmalina no maior bate papo. Assunto: vida dos outros, é claro, desta vez , do motorista da Confecção onde Turmalina trabalhava antes.

Turmalina:
Cê tá sabendo? Maior babado, babado forte mesmo. O Clarisvaldo tá de caso com dona Creuza.
Marielza:
Dona Creuza, a patroa, a dona da confecção?
Turmalina:
Pois é, menina.
Marielza:
Mas o Clarisvaldo só tem 23 anos.
Turmalina:
Essas coroas de hoje só querem pegar garotão. Imagina ela fez cinqüenta anos no ano passado, maior festão.
Marielza:
Ela só tem cinqüenta? Pensei que tivesse mais...
Turmalina:
Pois é. Mesmo depois de ficar internada naquela clínica de estética por um mês né, não adiantou muito não....
Marielza:
Mas ele não é casado?
Turmalina:
É casado sim. Mas ela disse que tava carente, que poderia compartilhar o que a vida tem de melhor.
Marielza:
Essas mulheres, cada vez mais sem vergonha. Carência agora é desculpa para qualquer coisa...
Marielza:
Mas ele está com uma vida boa danada. Até do trabalho saiu. Ela dá tudo pra ele, do bom e do melhor. Laptop última geração, celular, é quantos modelo novo saem, é quantos que ele ganha, bluray E a 3D? Não dá nem pra comentar, que vão dizer que tô com inveja. Tela grande, a mais cara da loja. E o carro? Tu acredita que ele escolheu um crossfox e ela deu pra ele?
Marielza:
Mas e a mulher dele? Já pensou se ela ficar sabendo?
Turmalina:
Ela desconfia. Ele diz que está fazendo hora extra. Ela não caiu nessa não, mas ficou quietinha. Inclusive fiquei sabendo que ela falou, que se ele sempre manter o conforto que ela tem agora, viagem pra Cabo Frio todo feriadão, crediário nas Casas Bahia – e desde que também compareça de noite - ela finge que não sabe de nada...
FIM