quinta-feira, 27 de abril de 2017

Maiakovski de Brecht, às avessas *


Primeiro, foram os não-militantes
você os chamou de ignorantes;
depois, eleitores da última linha
e você os xingou de coxinha;
em seguida, foi-se a reserva moral
você disse que era interesse eleitoral;
depois foram militantes fundadores,
mas você os acusou de traidores;
então foi-se o teólogo da libertação
você gritou “é mentira! não foi não!”
foram-se os bons, ficaram os "da lista"
e, sozinho, você dança na pista.


* atribuído a Adriana Avellar

sábado, 22 de abril de 2017

Anti-revolução dos Bichos

por Adriana Avellar

Num continente muito, mas muito distante mesmo, vivia um gnu da cara peluda que pensava como leão e sonhava ser o rei do serengueti. 
Era bom de papo e tinha muitos amigos: zebras, gazelas, toupeiras, cavalos-selvagens. Até  mesmo corujas admiravam seus estratagemas para driblar ataques de crocodilo, o maior de todos os inimigos. Não que todos escapassem, mas, unidos, conseguiam, ao menos, sucumbir com um pouco mais de dignidade. 
Isso era muito bonito, mas não bastava pra ser rei. 

Então o gnu da cara peluda procurou a raposa feiticeira, que tinha uma magia poderosa capaz de transformar um simples gnu da cara peluda no rei do serengueti. 
Era uma rara façanha numa terra dominada por crocodilos, mas a raposa feiticeira confirmou seu poder mágico.
- Eu posso, sim, fazer essa magia. Você quer?
- Claro, é tudo o que eu quero. Mas ouvi dizer que seu serviço é muito caro - mugiu o gnu.
- Não se preocupe. Quem vai pagar é o crocodilo mor.
- Mas ele é meu pior inimigo! - urrou.
- Deixa essa parte comigo. 
- E o que eu tenho que fazer? - roncou.
- Apare o pelo da cara. 
- Só isso, companheiro? - perguntou o gnu, já sentindo-se íntimo da raposa feiticeira.
- Apare o pelo da cara e deixa o resto comigo - regougou a raposa feiticeira.

No dia seguinte, a raposa apareceu com uma fantasia de legítimo crocodilo italiano, que caiu muito bem no gnu, depois que ele aparou o pelo da cara. O gnu se olhou no espelho e ficou admirado de si mesmo.
- Estou irreconhecível! 

De fato. O gnu até se aprumou. Andou para cá e pra lá, cheio de categoria, com o peito inflado.

Entre as zebras, gazelas e até toupeiras, teve quem desconfiasse da raposa-feiticeira. Mas o gnu, não mais de cara peluda, ria gostosamente. 
- Vocês se preocupam à toa. Sou gnu, mas sou mais raposa que a raposa. É só mais um estratagema - garantia.
Enfim, os amigos concordaram. E também os falsos amigos.
- Se ele pode ser rei, a gente também podia - invejavam à boca pequena.

O feitiço deu certo. Mal o gnu aparou os pelos da cara e vestiu a fantasia de legítimo crocodilo italiano, apareceram novos admiradores. Sem distinção de espécie e família: hienas, servais, antílopes, e até leopardos e leões. De toda parte, chegavam patos, elefantes, girafas, papagaios. E apareceu até mesmo o chacal listrado. Sim, um chacal, aquele bicho que gosta de caçar sozinho, ardilosamente, na escuridão da noite. 

E houve uma grande festa, com todo tipo de distração, para todos os animais do serengueti.
- Viva o gnu-rei! - bradavam, quando ele passava desfilando e acenando.
- Isso vai sair caro. - piou a coruja.
- Ih, relaxa. Eu não te falei? A raposa botou na conta do crocodilo mor! - gargalhou o gnu-rei. 
- Isso vai sair muito mais caro! repiou, mais alerta.
-  Acha bom envolver o crocodilo nisso? - intrometeu-se o martim-pescador, que dava curso de pesca no rio e conhecia o perigo.
- Ninguém é inimigo do rei - respondeu o gnu-rei, já perdendo a paciência.
- Mas crocodilo, você sabe, se der brecha… 

Mesmo a contragosto, o gnu-rei pensou no aviso. Achou melhor se precaver. Com a experiência da época em que unia as presas nas defesas coletivas, concluiu que o melhor era manter a boca do crocodilo ocupada. 

No dia seguinte, o gnu-rei mandou uns patos ao rio. O crocodilo devorou de uma abocanhada só. E o gnu-rei entendeu o recado. E dali em diante mandou mais e mais e mais patos, marrecos, avestruzes. 

E foi assim que começou a impensável amizade entre um gnu e um crocodilo.

A toca do gnu-rei virou uma espécie de serviço delivery para os pedidos do crocodilo. “Agora, uma zebra, amigo!”; "Ouvi dizer que tem uma manada de elefantes no ponto de abate, amigo”; “Que tal um jantar com uns urubus, amigo?”; “Manda uns patinhos como aperitivo, amigo!”

E assim correram os dias. O crocodilo ficava no rio, fazendo o que crocodilo sabe fazer, e o gnu-rei mandando uns mimos. Tudo recheado no capricho, bem ao gosto do réptil, sofisticado que era. E as presas-presentes já não iam mais no varejo, seguiam no atacado. Era uma verdadeira empreitada, tal a quantidade de lembrancinhas. E o crocodilo não ficava atrás: sabia bem recompensar o amigo.

Mas o gnu-rei não contou com um problema: começou a faltar caça para os outros crocodilos; os que viviam do outro lado do rio. 

- Isso é porque o crocodilo-mor abocanha tudo só pra ele - reclamava o chefe do outro bando. 
- Precisamos fazer alguma coisa urgente! Até as hienas estão coladas com o gnu rei - disseram os conselheiros.

Um dia, ao acaso, um lagarto, muito dedicado e cumpridor das leis do serenguete, caçou um papagaio. Estava indo feliz com seu papagaio debaixo do braço, quando foi interpelado pelo faminto chefe dos crocodilos do outro lado do rio.
- O que você tem aí? - grasnou o reptante.
- É só um papagaio - gecou o lagarto. 
- Sabe que isso é tráfico de animais silvestres? - bufou o rinoceronte, chefe da segurança.
- Não é tráfico de animais silvestres, é pra uso próprio, eu sou cumpridor das leis, e tenho licença pra caçar - resfolegou o lagarto, exibindo sua carteirinha vermelha.
O crocodilo sorriu.
- Esse papagaio sabe falar? - bramiu.
- Acho que sim.

O papagaio, mais malandro que o Zé Carioca, viu uma oportunidade de se safar. Concluiu que se taramelasse boas histórias estaria a salvo da bocarra do crocodilo. E das garras do lagarto. E charlou uma boa anedota sobre o gnu-rei, envolvendo lagos e cisnes. 

O lagarto ouviu, sério, a história. Já o bando de crocodilos do outro lado do rio achou graça. E os patos e outros animais também. Há tempos não riam tanto. O papagaio se animou. E contou intricadas histórias de como a raposa fazia seus feitiços. Foi um sucesso! 

Assim, o lagarto decidiu promover um festival de contação de histórias. Quem contasse as melhores seria premiado! Quentão soubesse, ia pra jaula.

E vieram fábulas de pedaladas e de pedalinhos. E anedotas sobre o gnu-rei com garças, galos e galinhas, flamingos e outros bichos de penas. Nem o chacal listrado escapou: justo ele, que sempre caçou sozinho, na madrugada! E tinha contos de hienas, raposas, zebras, girafas, hipopótamos, elefantes, macacos. Tinha até histórias das manadas do outro lado do rio, envolvendo o chefe dos crocodilos. Mas essas, o pessoal nem achava muita graça. O que eles gostavam mesmo era das histórias que tinha o gnu-rei no meio. 

E como quem começou o festival foi o lagarto, era ele quem ganhava prestígio no serengueti. Chegaram a cogitar dele ser rei. Afinal, tinha descoberto os contadores das anedotas que distraiam e deixavam de orelha em pé.

Mas como toda novidade, teve uma hora que as narrações começaram a ficar modorrentas, repetitivas, sem graça. Faltava criatividade, diziam os promotores do evento.

Foi então que o crocodilo mor resolveu participar do festival, causando um grande alvoroço e expectativa. Que histórias ele teria pra contar? 

Tinha muitas. Ele era mais que um simples contador. Ele era o construtor das histórias! 

- O que você vai fazer? - perguntavam ao gnu-rei os amigos que sobraram.
- Relaxa. O crocodilo é meu amigo, companheiro. 

E o crocodilo mor, tão à vontade quanto o papagaio, abriu a boca. Grasnou, bramiu, rosnou. Tinha talento. Sabia dar o suspense na hora certa, as pausas de efeito, o tempo de comédia. Era um expert em reviravoltas. E contava rindo, transformando histórias de terror, de mortos-vivos comendo-se uns aos outros, em causos divertidíssimos.

E grasnou histórias dos crocodilos do outro lado do rio, e das mais variadas manadas do serenguete. 

Os amigos do gnu-rei se empolgaram.
- Tá vendo? E depois falam do nosso gnu-rei! - repetiam.

Mas o crocodilo-mor não poupou o Amigo. Contou intimidades dos dois, problemas com o crocodilo júnior e com o gnu filho, passagens difíceis e momentos engraçados, cumplicidades. O gnu-rei não podia acreditar (vivia na fase da negação). 

- Não, ele não fez isso comigo - falava pra si, enquanto apertava a tecla 1 do celular.
- Alô?
- Até, tu, Croquerido? - perguntou o decepcionado gnu-rei.

E o crocodilo mor, construtor de histórias e devorador de reputações, respondeu:

- Não está no meu controle, Amignu. Crocodilagem é a minha natureza.

Foi um espanto! O serengueti inteiro comentando. Uns se fazendo surpresos e outros surpresos de fato, acreditando que o festival tinha chegado ao fim. 

Menos alguns macacos. Do alto da árvore, viram um ratel esgueirando-se para uma toca. Ficaram paralisados. Macacos sabem que ratel é uma espécie que ataca e mata qualquer coisa em movimento. E então, para espanto do bando, o crocodilo mor apareceu, rastejando devagar.

Parabéns! - guinchou o ratel. - O que é teu tá muito bem guardado! - gargalhou.

E se despediram, um para cada lado.

- Vamos avisar aos outros! Ainda tem um chefe oculto! - assobiou um macaquinho-filhote.
- Vão achar que é macaquice! charlou o macaco-pai. - O que o senhor me diz, meu ancião?  

O macaco-avó apenas sorriu e chiou.
- Eu, hein! Macaco velho não mete a mão em cumbuca!



FIM.