quinta-feira, 27 de abril de 2017

Maiakovski de Brecht, às avessas *


Primeiro, foram os não-militantes
você os chamou de ignorantes;
depois, eleitores da última linha
e você os xingou de coxinha;
em seguida, foi-se a reserva moral
você disse que era interesse eleitoral;
depois foram militantes fundadores,
mas você os acusou de traidores;
então foi-se o teólogo da libertação
você gritou “é mentira! não foi não!”
foram-se os bons, ficaram os "da lista"
e, sozinho, você dança na pista.


* atribuído a Adriana Avellar

sábado, 22 de abril de 2017

Anti-revolução dos Bichos

por Adriana Avellar

Num continente muito, mas muito distante mesmo, vivia um gnu da cara peluda que pensava como leão e sonhava ser o rei do serengueti. 
Era bom de papo e tinha muitos amigos: zebras, gazelas, toupeiras, cavalos-selvagens. Até  mesmo corujas admiravam seus estratagemas para driblar ataques de crocodilo, o maior de todos os inimigos. Não que todos escapassem, mas, unidos, conseguiam, ao menos, sucumbir com um pouco mais de dignidade. 
Isso era muito bonito, mas não bastava pra ser rei. 

Então o gnu da cara peluda procurou a raposa feiticeira, que tinha uma magia poderosa capaz de transformar um simples gnu da cara peluda no rei do serengueti. 
Era uma rara façanha numa terra dominada por crocodilos, mas a raposa feiticeira confirmou seu poder mágico.
- Eu posso, sim, fazer essa magia. Você quer?
- Claro, é tudo o que eu quero. Mas ouvi dizer que seu serviço é muito caro - mugiu o gnu.
- Não se preocupe. Quem vai pagar é o crocodilo mor.
- Mas ele é meu pior inimigo! - urrou.
- Deixa essa parte comigo. 
- E o que eu tenho que fazer? - roncou.
- Apare o pelo da cara. 
- Só isso, companheiro? - perguntou o gnu, já sentindo-se íntimo da raposa feiticeira.
- Apare o pelo da cara e deixa o resto comigo - regougou a raposa feiticeira.

No dia seguinte, a raposa apareceu com uma fantasia de legítimo crocodilo italiano, que caiu muito bem no gnu, depois que ele aparou o pelo da cara. O gnu se olhou no espelho e ficou admirado de si mesmo.
- Estou irreconhecível! 

De fato. O gnu até se aprumou. Andou para cá e pra lá, cheio de categoria, com o peito inflado.

Entre as zebras, gazelas e até toupeiras, teve quem desconfiasse da raposa-feiticeira. Mas o gnu, não mais de cara peluda, ria gostosamente. 
- Vocês se preocupam à toa. Sou gnu, mas sou mais raposa que a raposa. É só mais um estratagema - garantia.
Enfim, os amigos concordaram. E também os falsos amigos.
- Se ele pode ser rei, a gente também podia - invejavam à boca pequena.

O feitiço deu certo. Mal o gnu aparou os pelos da cara e vestiu a fantasia de legítimo crocodilo italiano, apareceram novos admiradores. Sem distinção de espécie e família: hienas, servais, antílopes, e até leopardos e leões. De toda parte, chegavam patos, elefantes, girafas, papagaios. E apareceu até mesmo o chacal listrado. Sim, um chacal, aquele bicho que gosta de caçar sozinho, ardilosamente, na escuridão da noite. 

E houve uma grande festa, com todo tipo de distração, para todos os animais do serengueti.
- Viva o gnu-rei! - bradavam, quando ele passava desfilando e acenando.
- Isso vai sair caro. - piou a coruja.
- Ih, relaxa. Eu não te falei? A raposa botou na conta do crocodilo mor! - gargalhou o gnu-rei. 
- Isso vai sair muito mais caro! repiou, mais alerta.
-  Acha bom envolver o crocodilo nisso? - intrometeu-se o martim-pescador, que dava curso de pesca no rio e conhecia o perigo.
- Ninguém é inimigo do rei - respondeu o gnu-rei, já perdendo a paciência.
- Mas crocodilo, você sabe, se der brecha… 

Mesmo a contragosto, o gnu-rei pensou no aviso. Achou melhor se precaver. Com a experiência da época em que unia as presas nas defesas coletivas, concluiu que o melhor era manter a boca do crocodilo ocupada. 

No dia seguinte, o gnu-rei mandou uns patos ao rio. O crocodilo devorou de uma abocanhada só. E o gnu-rei entendeu o recado. E dali em diante mandou mais e mais e mais patos, marrecos, avestruzes. 

E foi assim que começou a impensável amizade entre um gnu e um crocodilo.

A toca do gnu-rei virou uma espécie de serviço delivery para os pedidos do crocodilo. “Agora, uma zebra, amigo!”; "Ouvi dizer que tem uma manada de elefantes no ponto de abate, amigo”; “Que tal um jantar com uns urubus, amigo?”; “Manda uns patinhos como aperitivo, amigo!”

E assim correram os dias. O crocodilo ficava no rio, fazendo o que crocodilo sabe fazer, e o gnu-rei mandando uns mimos. Tudo recheado no capricho, bem ao gosto do réptil, sofisticado que era. E as presas-presentes já não iam mais no varejo, seguiam no atacado. Era uma verdadeira empreitada, tal a quantidade de lembrancinhas. E o crocodilo não ficava atrás: sabia bem recompensar o amigo.

Mas o gnu-rei não contou com um problema: começou a faltar caça para os outros crocodilos; os que viviam do outro lado do rio. 

- Isso é porque o crocodilo-mor abocanha tudo só pra ele - reclamava o chefe do outro bando. 
- Precisamos fazer alguma coisa urgente! Até as hienas estão coladas com o gnu rei - disseram os conselheiros.

Um dia, ao acaso, um lagarto, muito dedicado e cumpridor das leis do serenguete, caçou um papagaio. Estava indo feliz com seu papagaio debaixo do braço, quando foi interpelado pelo faminto chefe dos crocodilos do outro lado do rio.
- O que você tem aí? - grasnou o reptante.
- É só um papagaio - gecou o lagarto. 
- Sabe que isso é tráfico de animais silvestres? - bufou o rinoceronte, chefe da segurança.
- Não é tráfico de animais silvestres, é pra uso próprio, eu sou cumpridor das leis, e tenho licença pra caçar - resfolegou o lagarto, exibindo sua carteirinha vermelha.
O crocodilo sorriu.
- Esse papagaio sabe falar? - bramiu.
- Acho que sim.

O papagaio, mais malandro que o Zé Carioca, viu uma oportunidade de se safar. Concluiu que se taramelasse boas histórias estaria a salvo da bocarra do crocodilo. E das garras do lagarto. E charlou uma boa anedota sobre o gnu-rei, envolvendo lagos e cisnes. 

O lagarto ouviu, sério, a história. Já o bando de crocodilos do outro lado do rio achou graça. E os patos e outros animais também. Há tempos não riam tanto. O papagaio se animou. E contou intricadas histórias de como a raposa fazia seus feitiços. Foi um sucesso! 

Assim, o lagarto decidiu promover um festival de contação de histórias. Quem contasse as melhores seria premiado! Quentão soubesse, ia pra jaula.

E vieram fábulas de pedaladas e de pedalinhos. E anedotas sobre o gnu-rei com garças, galos e galinhas, flamingos e outros bichos de penas. Nem o chacal listrado escapou: justo ele, que sempre caçou sozinho, na madrugada! E tinha contos de hienas, raposas, zebras, girafas, hipopótamos, elefantes, macacos. Tinha até histórias das manadas do outro lado do rio, envolvendo o chefe dos crocodilos. Mas essas, o pessoal nem achava muita graça. O que eles gostavam mesmo era das histórias que tinha o gnu-rei no meio. 

E como quem começou o festival foi o lagarto, era ele quem ganhava prestígio no serengueti. Chegaram a cogitar dele ser rei. Afinal, tinha descoberto os contadores das anedotas que distraiam e deixavam de orelha em pé.

Mas como toda novidade, teve uma hora que as narrações começaram a ficar modorrentas, repetitivas, sem graça. Faltava criatividade, diziam os promotores do evento.

Foi então que o crocodilo mor resolveu participar do festival, causando um grande alvoroço e expectativa. Que histórias ele teria pra contar? 

Tinha muitas. Ele era mais que um simples contador. Ele era o construtor das histórias! 

- O que você vai fazer? - perguntavam ao gnu-rei os amigos que sobraram.
- Relaxa. O crocodilo é meu amigo, companheiro. 

E o crocodilo mor, tão à vontade quanto o papagaio, abriu a boca. Grasnou, bramiu, rosnou. Tinha talento. Sabia dar o suspense na hora certa, as pausas de efeito, o tempo de comédia. Era um expert em reviravoltas. E contava rindo, transformando histórias de terror, de mortos-vivos comendo-se uns aos outros, em causos divertidíssimos.

E grasnou histórias dos crocodilos do outro lado do rio, e das mais variadas manadas do serenguete. 

Os amigos do gnu-rei se empolgaram.
- Tá vendo? E depois falam do nosso gnu-rei! - repetiam.

Mas o crocodilo-mor não poupou o Amigo. Contou intimidades dos dois, problemas com o crocodilo júnior e com o gnu filho, passagens difíceis e momentos engraçados, cumplicidades. O gnu-rei não podia acreditar (vivia na fase da negação). 

- Não, ele não fez isso comigo - falava pra si, enquanto apertava a tecla 1 do celular.
- Alô?
- Até, tu, Croquerido? - perguntou o decepcionado gnu-rei.

E o crocodilo mor, construtor de histórias e devorador de reputações, respondeu:

- Não está no meu controle, Amignu. Crocodilagem é a minha natureza.

Foi um espanto! O serengueti inteiro comentando. Uns se fazendo surpresos e outros surpresos de fato, acreditando que o festival tinha chegado ao fim. 

Menos alguns macacos. Do alto da árvore, viram um ratel esgueirando-se para uma toca. Ficaram paralisados. Macacos sabem que ratel é uma espécie que ataca e mata qualquer coisa em movimento. E então, para espanto do bando, o crocodilo mor apareceu, rastejando devagar.

Parabéns! - guinchou o ratel. - O que é teu tá muito bem guardado! - gargalhou.

E se despediram, um para cada lado.

- Vamos avisar aos outros! Ainda tem um chefe oculto! - assobiou um macaquinho-filhote.
- Vão achar que é macaquice! charlou o macaco-pai. - O que o senhor me diz, meu ancião?  

O macaco-avó apenas sorriu e chiou.
- Eu, hein! Macaco velho não mete a mão em cumbuca!



FIM.

domingo, 30 de janeiro de 2011

Prova de Gramática - Parte 04

Adriana Avellar

Gente! Olha o livro que o Roberto pegou! Esse menino lindo me traz numa livraria e vai comprar Miss Dalloway – Virginia Wolf. Peraí. Mas esse é do nível advance. Se esse menino não nasceu na Inglaterra, como pode ler um livro do selo laranja – para fluência total? Será que ele começou estudar inglês aos dois anos de idade? Nem que estudasse na British School. Como é que eu devo me comportar diante desse gênio? Como será que a primeira namorada do Einstein se comportou na primeira vez que entraram juntos numa livraria? Acho que vou pegar esse outro livro do selo laranja casualmente e folhear como se eu também tivesse intimidade.
Não!! E se ele me perguntar alguma coisa em inglês? Ai, meu Deus. Every day I get up at . Pior. E se ele quiser conversar em inglês? I wash and dress. Then I eat my breakfast. E se ele achar que o único defeito imperdoável numa menina é não saber falar inglês fluentemente? The japanese as a people are very polite...
-          Meu irmão mais velho é um chato. É a segunda vez que me pede pra comprar livro de inglês pra ele e escreve o nome com esse garrancho.
Para o irmão? Ele vai comprar um livro para o irmão, graças a Deus! Talvez ele só saiba inglês tanto quanto eu.
-          Sabe o que está escrito aqui? Eu não entendo nada. Não sei nada de inglês!
Que máximo. Ele sabe inglês tanto quanto eu! Como ele é bonito, com esses óculos prateados, e essas bochechas rosadas, e esse brinco na orelha, e esses...
-          Que houve?
-          Hã? Ah, me dá aqui o papel.
Meu Deus. É agora ou nunca. Pára, coração. Não!! Não pára não. Continua, mas mais devagar. Não vá pular pra fora, só porque ele encostou na minha mão. Essa primeira palavra parece Othel, mas com o H no lugar errado? Não seria Hotel?  Eu não entendo mesmo. Segunda, também não, terceira parece Mool ou Moor, quarta parece of, quinta é Venice. Que livro é esse? Milhas Shakes...
-          Shakespeare! William Shakespeare! – grito.
Todos na livraria olham pra mim. É a primeira vez que fico feliz pelo fato desta livraria ter tão poucos freqüentadores. Normalmente fico chateada em pensar que meu público para o meu futuro livro é bastante restrito. Mas hoje eu acho ótimo que poucas pessoas olhem pra mim. Poucas pessoas vão me apontar e dizer: olha a louca! O vendedor já está do nosso lado.
-          O senhor tem Otelo em Inglês?  – pergunto, na língua em que tenho fluência.
-          Othello, the moor of Venice? – pergunta o vendedor num inglês que eu não faço a mínima idéia se é impecável ou macarrônico.
-          Yes, respondo, numa pronúncia perfeita.
O vendedor sai para buscar o livro.
-          Não sabia que você sabia falar inglês – comenta Roberto.
-          Nem eu.
-          Vou até a máquina saber o preço do livro – diz Roberto, antes de sair.
Esse lugar é lindo. Aqui eu me sinto realmente à vontade. Para mim, uma livraria é um lugar mais confortável que o útero da minha mãe. Mesmo porque eu não lembro como me sentia no útero dela. Adoro o cheiro de livro novo. O que não é nenhuma vantagem porque eu adoro também o cheiro de livro velho. Aliás, cheiro de livro, eu adoro todos.  Eu sei que prometi não entrar mais em livraria nem sebo nem biblioteca. Mas pelo amor vale tudo, não é mesmo? Eu não poderia perder a oportunidade de sair da escola ao lado do Roberto e de poder conversar com ele. O chato é que eu acabo sonhando em me tornar escritora e você sabe, sem decorar e seguir rigorosamente as regras gramaticais...
Pena que eu não vou conseguir ler todos os livros que existem no mundo ainda que leve a vida toda. É muita coisa. Imagina quantos escritores eu vou passar a minha vida toda sem nem sequer ter ouvido falar? Talvez eu deixe de conhecer o mais fantástico de todos, mas tenho que contar com a sorte. Então eu fico aqui, só admirando. É tão lindo como os livros ficam dispostos nas prateleiras, por autor e classificação. Literatura brasileira, literatura estrangeira, lançamentos, romance, poesia, ficção, não-ficção. Ia ser lindo ter um livro meu aqui, bem numa prateleira dedicada a... a o quê mesmo? Droga, eu tenho que resolver que tipo de livro eu quero escrever.
Adoro pegar um livro assim e folhear e cheirar e olhar... Peraí, o que é isso? O que é isso!?!? Esse livro tá cheio de erro de revisão! Meu Deus, como deixaram passar? Cadê os pontos? Coitado do autor! Que falta de respeito! Como é que alguém põe à venda um livro mal revisado? Acho que vou avisar ao vendedor. Não! É melhor não. E se for uma edição pirata? Somente uma edição pirata teria um problema desse. Será que é caso pra chamar a polícia? É melhor disfarçar. Vou ver esse outro aqui. Meu Deus, cadê os pontos de novo? O que está acontecendo neste mundo?!?
-          Você vai levar o Ensaio Sobre a Cegueira ou o Homem Duplicado? - ouço uma voz ao meu lado.
É uma mulher simpática, olhando fixamente para os livros em minha mão.
-          Eu estou procurando o Ensaio para dar de presente. Parece que esse aí é o último – completa ela.
Estendo o livro, quero dizer que não vou comprar, mas ela parece muito simpática e talvez seja gentil avisá-la do erro de revisão, da edição pirata, dessas coisas... Abro o livro e mostro a página.
-          Eu acho que esse livro está com um probleminha – tomo coragem para dizer.
-          Probleminha? Que probleminha? – pergunta ela, olhando com tal naturalidade como se tudo estivesse no lugar. Será que ela não percebeu a falta de pontos?
-          Praticamente não tem ponto, só vírgula – digo baixinho, pra ninguém mais ouvir.
Ela dá um sorrisão. Acho que na verdade isso foi uma gargalhada. Discreta, mas ela riu de mim. O que será que está acontecendo?
-          Você gosta de ler? - pergunta ela.
-          Adoro – respondo, contente.
-          Mas nunca leu Saramago - sorri.
-          Não – confesso - Nem conheço.
-          Não se preocupe com os pontos. É o estilo dele.
-          O estilo dele é escrever assim desse jeito sem seguir rigorosamente as regras gramaticais? Como é que pode? – pergunto apontando a falta de vírgula. Acho que foi uma pergunta bem tola.
-          Essa resposta é só sua. Quem sabe ele não queira lhe tirar o fôlego? Ou deseja reproduzir o pensamento? Quem sabe talvez ele ame tanto a língua e tenha intimidade o bastante para brincar e quebrar as regras? Que tal ler? E descobrir?
Sorrio. Não sei se ela me acha idiota ou precoce. Minha mãe diz que eu sou precoce, mas opinião de mãe não conta. Ela deve ter me achado idiota. Uma coisa ou outra talvez dê no mesmo nessa hora. Dou um sorriso de despedida e me afasto, carregando um Homem Duplicado que vou abrir e ver de novo.
Hoje é o dia mais feliz da minha vida! Vim com o Roberto na livraria e ainda descubro isso. Estilo!!!  Esse cara é louco! É meu herói! Pronto, já tenho um mito. José Saramago. Vou pedir de presente pra mamãe. Não. A mamãe também não quer mais me dar livro de presente. Ela diz que eu só fico sozinha lendo e que tenho que ter vida social. Até me colocou no psicólogo por isso. Mas se aborreceu com ele, porque ele disse que ela e o papai precisavam de psicólogos. Mamãe se aborrece à toa. E acha que livro me faz esquecer da vida. Como pode?, se livro é a própria vida?
Vou pedir pra tia Iolanda. Acho que ela não vai se recusar. Ela também gosta de ler. Quero poder conhecer José Saramago. Ele é fantástico! Faz o que quer. Pode nunca receber o Nobel de Literatura porque quebra as regras gramaticais, mas pelo menos desobedece a Dona Gerúndia. E o livro é todo lindo! Até a capa, a contracapa, as orelhas. Peraí, que isso? O que é isso escrito aqui, meu Deus?!? Mais uma vez, o Prêmio Nobel – peraí, deixa eu ler direito – o Prêmio Nobel de Literatura... Como pode um Nobel de Literatura que não segue rigorosamente as regras gramaticais, como ordena a Dona Gerúndia?
Isso é o máximo: escreve sem ponto e consegue ser prêmio Nobel de Literatura! Será que ele é como eu que adora proparoxítona? Sim. Porque vírgula é uma palavra proparoxítona. E se ele se recusa a usar ponto... Puxa é legal escrever sem ponto, só com vírgula, às vezes, a vírgula fazendo um papel de ponto o que a torna um pouco mais importante e definitiva, porque a vírgula do jeito normal, jamais é definitiva, se bem que do jeito que esse cara escreve também não é muito definitiva, porque agora eu descobri que quando ele quer realmente definitivar ele usa um belo ponto parágrafo.
O que eu acho lindo porque parágrafo também é uma palavra proparoxítona. José Saramago. José Saramago. Como é que vivi 12 anos sem conhecer José Saramago? Dona Gerúndia não pode saber que ele existe. É capaz dela pintar a cara e fazer uma passeata contra ele. Ainda bem que não foi ela quem revisou esse livro. Ia sair tacando ponto a torto e a direito e eu perderia esse definitivo argumento de que posso, sim, escrever sem obedecer todas as regras gramaticais. Posso obedecer à alma. Ai, que bom, José Saramago existe.
-          Eu tô gostando desse cara – penso alto.
-          Bem que eu desconfiei – responde uma voz de além túmulo do meu lado. É Áurea, com duas amigas, rindo de mim quando Roberto volta do caixa com o livro embrulhado.
-          Namorados, namorados, namorados.
Eu poderia sair daqui desta livraria debaixo de outra trilha sonora. Ô garota chata! Mas hoje, com Roberto e Saramago, nem ela nem ninguém vai conseguir acabar com meu humor. É o dia mais feliz da minha vida.

FIM.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Prova de Gramática - Parte 03

(Adriana Avellar)
Hoje é o pior dia de todos os meus doze anos. Tirei 2,8 na Prova de Gramática e agora estou sendo zuada pela Áurea, a nerd que senta na carteira ao lado, que , desconfio está namorando o Roberto, o garoto mais bonito da sala.
-          Quanto você tirou? – a Áurea me pergunta.
-          Ah, eu tirei uma nota – respondo, sub-repticiamente, para usar uma expressão nova que aprendi ontem num daqueles livros policiais de banca que a minha mãe gosta de ler. Os escritores policiais, acho, adoram sub-repticiamente.
-          É claro que foi uma nota, né? Mas de quanto foi essa nota? – a Áurea frisa e chama a atenção de todos os que estão por perto. Fico em silêncio.
-          Não quer dizer é porque tirou uma nota baixa – ri a debochada.
-          Eu posso ter tirado uma nota maior que a sua! – quase berro, fingindo rir.
-          A minha nota é dez! – ri a Áurea, exibindo a prova com um enorme Parabéns da Dona Gerúndia.
Todos estão olhando pra mim. Meu rosto está quente, eu devo estar parecendo um tomate.
-          E a dela é vinte! – diz Roberto, o garoto mais lindo da sala, exibindo uma nota amarelinha de vinte reais – Eu pedi emprestado mas vou devolver – completa, mais debochado ainda que vinte áureas juntas.
Todos riem. Roberto estende a mão e eu pego a nota. Ele pisca o olho pra mim. Agora eu devo parecer uma salada de tomate com pimenta calabresa. Mas ainda consigo sorrir. Áurea, que estava em pé me desafiando, senta-se, sem graça. Ninguém tira da minha cabeça que essa garota tem uma quedinha pelo Roberto, meu herói que me salvou a vida hoje. Eu até achava que ele tava namorando essa metida. Agora sei que não.
-          Depois da aula me devolve essa nota que é pra eu comprar um livro em inglês, hein? – Roberto fala quase sussurrando.
Eu respondo com um sorriso. Livro em inglês? Ele é poliglota! E além de tudo, freqüenta livraria. Eu tinha certeza de que existe alma gêmea. Hoje é o melhor dia de todos os meus doze anos.
Continua.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Prova de Gramática - Parte 2

(Adriana Avellar)
Não sei quem foi que inventou as regras gramaticais. Coitado do Machado de Assis. Como será que ele era obrigado a usar as regras gramaticais? Talvez o dono da editora, que era o chefe dele, encomendasse: quero um livro que contenha vinte e oito hipérboles, três pleonasmos, quinze metáforas, trinta e duas figuras de linguagem a escolher, 545 orações coordenadas adversativas ou subordinadas conformativas, consecutivas ou proporcionais, 48 locuções conjuntivas conclusivas ou explicativas. Tem que ter também 52 tipos de o que o autor quer dizer para as provas de interpretação de texto. Ah, e antes que eu me esqueça: precisa também ter uma história.
Encontre o sujeito na frase. Ei, peraí, isso é uma prova de português ou um jogo de detetive? O sujeito não está no hall, não está no escritório, não está no salão de jogos nem no de festas, nem na sala de música ou de jantar ou de estar. Estaria o sujeito na cozinha? Não, o sujeito pode ter se escondido na biblioteca dentro de algum livro daquelas coleções enormes de capa dura vermelha. Se eles tivessem miolo. Parece incrível, não é? Mas tem gente que compra capa de livro a metro pra enfeitar a estante.
Foco na prova. Foco na prova. Retire do texto duas palavras com derivação parassintética. Dê o aumentativo sintético e analítico dos substantivos grifados. Sublinhe no texto três substantivos abstratos e um composto. Dê dois exemplos de superlativo absoluto sintético. Identifique o agente da passiva no quarto parágrafo. O que é siglonimização? Como é que se conjuga o verbo danar na primeira pessoa do singular no modo imperativo? Não. Essa última pergunta é minha mesmo. Vou me dar mal e ficar em recuperação.
-          Tempo esgotado.  Entreguem a prova.  Silêncio! Não quero ouvir um pio!
Esse é o momento martírio. Todo mundo calado, sem poder dar um pio, enquanto Dona Gerúndia silenciosamente corrige as provas. A única vantagem é que ela não pode impedir ninguém de pensar. Porque o resto, ela proíbe. Depois ela chama um a um e dá a sentença. E a minhaé: nada de querer se escritora. Preciso encontrar uma profissão bem longe dos livros. Talvez eu trabalhe numa loja de departamentos. Vou vender eletrodomésticos. Não! Lá, tem manual de instruções. Não deixa de ser uma espécie de livro.
-          Carlos Heitor, venha buscar a prova.
Pronto. Começou a distribuição. Agora ela entrega um a um e quem tem dúvida, levanta a mão que ela vai até a carteira e tira a dúvida, baixando ainda mais a nota. Ela sempre encontra um jeito de baixar ainda mais a nota. Por isso, eu sempre fico calada.
-          Luís Fernando! Rubem! Gabriel! Lígia!
Ai, Deus, quando for minha vez, faça com que a Dona Gerúndia não conte certo meus erros. As provas deviam se apenas uma redação. Belo final e ótimo começo. O corpo também está muito bom. O professor de redação sempre me avalia assim. Eu posso até não saber o termo técnico do substantivo, mas sei perfeitamente como usá-lo. Eu também sei usar os acentos. Eu posso até nem saber exatamente o porquê deles estarem ali, mas sei que é onde devem estar. Canso de ver as palavras escritas nos livros.
Já pensou se a Dona Gerúndia fosse delegada? E resolvesse obrigar todo mundo a decorar as leis? E aí, toda esquina ia ter um guarda. Documentos, por favor, cidadão. E o cidadão ia mostrar os documentos e o guarda ia revistar e o cidadão não estaria armado e por que o senhor não está armado? E o cidadão ia dizer não tenho arma, e o guarda ia perguntar por quê, qual o número da lei que proíbe o cidadão de andar armado e exatamente o que diz a lei? E se o cidadão não soubesse responder, cana! E ele ia aparecer escondendo o rosto naqueles programas de TV que dizem, cadeia nele! E a dona Gerúndia ia dar entrevista e dizer que quem não conhece todas as leis municipais, estaduais e federais não pode ter a ousadia que querer sair de casa, cidadão!
Continua.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Prova de Gramática - Parte 1

(Adriana Avellar)
Sempre gostei das proparoxítonas. São as palavras mais simpáticas da língua portuguesa. Toda véspera de prova sonho encontrá-las, uma atrás da outra, na questão sobre acentuação. Sempre fui péssima - péssima é proparoxítona – sempre fui péssima em decorar regras gramaticais. Acentuam-se todas as palavras paroxítonas terminadas em... terminadas em quê mesmo, hein? E as oxítonas? Quando é que precisam ser acentuadas? Ai, meu Deus, não sei! Eu, em pânico - para usar outra proparoxítona - eu, em pânico. Não posso tirar nota baixa em português.
Acentuam-se todas as palavras proparoxítonas, não é o máximo? Não importa se elas são terminadas em “r” ou em “s” ou qualquer outra letra; se tem hiato, ditongo ou dígrafo. Já oxítonas e paroxítonas enganam a gente. Se alguém perguntar se oxítona é proparoxítona, qual a resposta certa? Sim. Mas não também está correto. Confuso, não? Pois bem, oxítona devia ser oxitoná e paroxítona devia ser paroxitôna. Mas não são. Por isso eu gosto das proparoxítonas, elas nunca traem!
Ai, meu Deus, todo dia de prova eu fico assim. Eu não devia ficar tão nervosa, eu não fiz cola, não abri o livro debaixo da carteira, nem espichei o olho para a prova da Áurea, a nerd que senta na carteira ao lado. Mas também, olha só o jeito com que ela esconde a prova! Ela praticamente deita em cima do papel! E também Dona Gerúndia dá uma prova diferente para cada fila. Vai ver ela pensa que eu vou colar. Não. Colar, eu não vou. Jamais correria o risco de dar a ela o gostinho de me pegar numa errada. Pode me revistar se quiser. Vem ela. Fez bem. Passou direto. Por enquanto escapei, mas eu preciso saber responder a essa questão.
Numere a segunda coluna de acordo com a primeira. Ai, não. Esse negócio de numerar só devia cair em prova de matemática. Essa confusão de português com matemática me dá nos nervos. Acho que vou ter uma convulsão! Calma. Não precisa ficar tão nervosa. Tente fazer a questão. Na pior das hipóteses é só colocar os números em qualquer ordem. Você terá mais chances que jogar na sena. São dez sentenças numeradas na esquerda correspondendo a dez respostas na direita. É só combinar 01 com d, 02 com f, 03 com h etc. Tenta. Tenta. Nota vermelha é que não! Eu devia ter estudado mais, decorado mais, prestado mais atenção na aula, devia ter me distraído menos, viajado menos, errado menos...

-          Ricardo, entregue a prova e pode sair de sala. Vá já para a direção!

Jesus! Isso é vociferar. Eu sempre quis saber o que era vociferar. Descobri na primeira vez que dona Gerúndia botou um aluno pra fora de sala. Isso é vociferar! Ela só não pode vociferar comigo de novo. Da última vez foi pra dizer que quem não conhece as regras gramaticais não pode ter a ousadia de querer escrever, menina!!! Esse escândalo todo porque eu falei, quando ela perguntou, que eu queria ser escritora. Ela pensou que eu estava debochando, mas eu falava a sério.
Até antes dessa vociferação, eu pensava que talvez pudesse escrever alguma coisa. Sem compromisso. Uma carta pra Bia, minha melhor amiga. E depois no futuro, ela iria vender no leilão da Sothersby’s, por um leiloeiro inglês. Não! É melhor um leiloeiro francês pra dar mais sonoridade, charme. Pois ela iria vender a carta e comprar uma linda casa. E um carro. E muita bala azedinha. E o William Bonner iria falar logo no início do Jornal Nacional “primeiro manuscrito original de Nobel de Literatura arrematado por 300 mil dólares”.
Não! Acho que eu não quero ser Nobel de Literatura. Acho legal ler meu nome nos jornais, mas prefiro entrar na lista dos mais vendidos. É, porque minha tia Iolanda disse que eu tenho que escolher. Ou escrever best-sellers ou ser a queridinha dos intelectuais. Parece que não existem intelectuais suficientes no mundo para colocar um livro na lista dos mais vendidos. Eu já tinha notado isso no caderno de livros do Globo e no Idéias do Jornal do Brasil. Eles sempre perguntam qual livro o intelectual está lendo. É sempre um que eu nunca ouvi falar e está sempre fora da relação dos campeões de venda. Às vezes eles perguntam que livro eles recomendam, mas pelo visto ninguém dá bola pra recomendação deles. Se não, na semana seguinte o recomendado estaria na lista dos mais vendidos, não é mesmo? Eu queria poder não dar bola pras recomendações da Dona Gerúndia. Acho que vou ficar em recuperação em português.
Que lindo! Um fragmento de texto. É assim que Dona Gerúndia chama as pequenas histórias que ela usa pra análise sintática. Análise sintática! Se não fosse uma expressão com duas proparoxítonas deveria ser banida da língua portuguesa. Como é que eu vou saber que figura de linguagem o autor usou no segundo parágrafo? Eu não moro com ele, eu nem o conheço, meu Deus, como é que eu vou saber? A única coisa que sei é que saber para mim agora é verbo intransitivo. Eu preciso saber. Não interessa o quê. Vou passar direto para as questões de acentuação. Sempre tem questão de acentuação nas provas da Dona Gerúndia.
Não acredito! Nenhuma proparoxítona. Dona Gerúndia é má. Ela é muito má. Como é que pode uma prova de gramática sem pergunta envolvendo proparoxítonas? É uma injustiça! Elas são o máximo, elas são charmosas e muito chiques. E o som? Não é fantástico? Véspera, trágico, médico, lívido, preâmbulo, sintomático, enigmático, pneumático... É só enfileirá-las. As proparoxítonas já nasceram poesia. 
Continua.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Assim já era, assim já é

(Ligineia Avellar)


Fatos reais. De ontem e de hoje.

Cena 01: Casa da minha mãe. Primavera de 1965. Minha mãe costura um vestido branco e nossa vizinha amiga faz companhia no maior bate papo. Assunto: vida dos outros, é claro, desta vez da cliente do vestido de noiva.

Vizinha:
- Mas porque ela quer vestido de noiva?
Mãe:
É para tirar uma foto e mandar pros parentes no interior. Cê sabe né ela é de Minas e os parentes não sabem da história.
Vizinha:
Também com 23 anos e encalhada... Foi arranjar esse velho ...Cê sabia que ele tem cinqüenta anos???? É fiscal da Receita Federal.
Mãe:
Mas pelo que estou sabendo ele é casado. Ela me pediu para colocar um véu. Isso eu não faço, que não vou sustentar mentira dos outros. Mas o vestido branco, tudo bem.
Vizinha:
É, ele é casado sim. Mas ele disse pra ela que a mulher dele tem problema. Tem muito tempo que eles não fazem aquele negócio...
Mãe:
Cê boba. Todo homem quando quer mijar fora do pinico, inventa essa história. A desculpa é sempre essa. Eu sei, já ouvi esse papo ó...
Vizinha:
Mas ela tá numa vida boa danada... Até saiu do trabalho...Ele dá tudo pra ela. Comprou uma frigidaire novinha, branquinha, linda. E a Telefunken? Não dá nem pra comentar, que vão dizer que tô com inveja. Tela grande, gabinete, a mais cara da loja. E o sofá? Tu acredita que ela escolheu da Gelli e ele deu pra ela? Tudo do bom e do melhor.
Mãe:
Mas e a mulher dele? Já pensou se ela ficar sabendo?
Vizinha:
Ela desconfia. Ele diz que está fazendo hora extra.Ela não caiu nessa não, mas ficou quietinha. Inclusive fiquei sabendo que ela falou, que se ele sempre manter o conforto que ela sempre teve, viagem pra Guarapari todo ano, modista todo mês, e troca dos móveis no Natal, e desde que não “procure” ela de noite, ela finge que não sabe de nada...

Cena 2: Confecção de roupas. Hora do almoço. Primavera de 2010. Marielza e Turmalina no maior bate papo. Assunto: vida dos outros, é claro, desta vez , do motorista da Confecção onde Turmalina trabalhava antes.

Turmalina:
Cê tá sabendo? Maior babado, babado forte mesmo. O Clarisvaldo tá de caso com dona Creuza.
Marielza:
Dona Creuza, a patroa, a dona da confecção?
Turmalina:
Pois é, menina.
Marielza:
Mas o Clarisvaldo só tem 23 anos.
Turmalina:
Essas coroas de hoje só querem pegar garotão. Imagina ela fez cinqüenta anos no ano passado, maior festão.
Marielza:
Ela só tem cinqüenta? Pensei que tivesse mais...
Turmalina:
Pois é. Mesmo depois de ficar internada naquela clínica de estética por um mês né, não adiantou muito não....
Marielza:
Mas ele não é casado?
Turmalina:
É casado sim. Mas ela disse que tava carente, que poderia compartilhar o que a vida tem de melhor.
Marielza:
Essas mulheres, cada vez mais sem vergonha. Carência agora é desculpa para qualquer coisa...
Marielza:
Mas ele está com uma vida boa danada. Até do trabalho saiu. Ela dá tudo pra ele, do bom e do melhor. Laptop última geração, celular, é quantos modelo novo saem, é quantos que ele ganha, bluray E a 3D? Não dá nem pra comentar, que vão dizer que tô com inveja. Tela grande, a mais cara da loja. E o carro? Tu acredita que ele escolheu um crossfox e ela deu pra ele?
Marielza:
Mas e a mulher dele? Já pensou se ela ficar sabendo?
Turmalina:
Ela desconfia. Ele diz que está fazendo hora extra. Ela não caiu nessa não, mas ficou quietinha. Inclusive fiquei sabendo que ela falou, que se ele sempre manter o conforto que ela tem agora, viagem pra Cabo Frio todo feriadão, crediário nas Casas Bahia – e desde que também compareça de noite - ela finge que não sabe de nada...
FIM