domingo, 30 de janeiro de 2011

Prova de Gramática - Parte 04

Adriana Avellar

Gente! Olha o livro que o Roberto pegou! Esse menino lindo me traz numa livraria e vai comprar Miss Dalloway – Virginia Wolf. Peraí. Mas esse é do nível advance. Se esse menino não nasceu na Inglaterra, como pode ler um livro do selo laranja – para fluência total? Será que ele começou estudar inglês aos dois anos de idade? Nem que estudasse na British School. Como é que eu devo me comportar diante desse gênio? Como será que a primeira namorada do Einstein se comportou na primeira vez que entraram juntos numa livraria? Acho que vou pegar esse outro livro do selo laranja casualmente e folhear como se eu também tivesse intimidade.
Não!! E se ele me perguntar alguma coisa em inglês? Ai, meu Deus. Every day I get up at . Pior. E se ele quiser conversar em inglês? I wash and dress. Then I eat my breakfast. E se ele achar que o único defeito imperdoável numa menina é não saber falar inglês fluentemente? The japanese as a people are very polite...
-          Meu irmão mais velho é um chato. É a segunda vez que me pede pra comprar livro de inglês pra ele e escreve o nome com esse garrancho.
Para o irmão? Ele vai comprar um livro para o irmão, graças a Deus! Talvez ele só saiba inglês tanto quanto eu.
-          Sabe o que está escrito aqui? Eu não entendo nada. Não sei nada de inglês!
Que máximo. Ele sabe inglês tanto quanto eu! Como ele é bonito, com esses óculos prateados, e essas bochechas rosadas, e esse brinco na orelha, e esses...
-          Que houve?
-          Hã? Ah, me dá aqui o papel.
Meu Deus. É agora ou nunca. Pára, coração. Não!! Não pára não. Continua, mas mais devagar. Não vá pular pra fora, só porque ele encostou na minha mão. Essa primeira palavra parece Othel, mas com o H no lugar errado? Não seria Hotel?  Eu não entendo mesmo. Segunda, também não, terceira parece Mool ou Moor, quarta parece of, quinta é Venice. Que livro é esse? Milhas Shakes...
-          Shakespeare! William Shakespeare! – grito.
Todos na livraria olham pra mim. É a primeira vez que fico feliz pelo fato desta livraria ter tão poucos freqüentadores. Normalmente fico chateada em pensar que meu público para o meu futuro livro é bastante restrito. Mas hoje eu acho ótimo que poucas pessoas olhem pra mim. Poucas pessoas vão me apontar e dizer: olha a louca! O vendedor já está do nosso lado.
-          O senhor tem Otelo em Inglês?  – pergunto, na língua em que tenho fluência.
-          Othello, the moor of Venice? – pergunta o vendedor num inglês que eu não faço a mínima idéia se é impecável ou macarrônico.
-          Yes, respondo, numa pronúncia perfeita.
O vendedor sai para buscar o livro.
-          Não sabia que você sabia falar inglês – comenta Roberto.
-          Nem eu.
-          Vou até a máquina saber o preço do livro – diz Roberto, antes de sair.
Esse lugar é lindo. Aqui eu me sinto realmente à vontade. Para mim, uma livraria é um lugar mais confortável que o útero da minha mãe. Mesmo porque eu não lembro como me sentia no útero dela. Adoro o cheiro de livro novo. O que não é nenhuma vantagem porque eu adoro também o cheiro de livro velho. Aliás, cheiro de livro, eu adoro todos.  Eu sei que prometi não entrar mais em livraria nem sebo nem biblioteca. Mas pelo amor vale tudo, não é mesmo? Eu não poderia perder a oportunidade de sair da escola ao lado do Roberto e de poder conversar com ele. O chato é que eu acabo sonhando em me tornar escritora e você sabe, sem decorar e seguir rigorosamente as regras gramaticais...
Pena que eu não vou conseguir ler todos os livros que existem no mundo ainda que leve a vida toda. É muita coisa. Imagina quantos escritores eu vou passar a minha vida toda sem nem sequer ter ouvido falar? Talvez eu deixe de conhecer o mais fantástico de todos, mas tenho que contar com a sorte. Então eu fico aqui, só admirando. É tão lindo como os livros ficam dispostos nas prateleiras, por autor e classificação. Literatura brasileira, literatura estrangeira, lançamentos, romance, poesia, ficção, não-ficção. Ia ser lindo ter um livro meu aqui, bem numa prateleira dedicada a... a o quê mesmo? Droga, eu tenho que resolver que tipo de livro eu quero escrever.
Adoro pegar um livro assim e folhear e cheirar e olhar... Peraí, o que é isso? O que é isso!?!? Esse livro tá cheio de erro de revisão! Meu Deus, como deixaram passar? Cadê os pontos? Coitado do autor! Que falta de respeito! Como é que alguém põe à venda um livro mal revisado? Acho que vou avisar ao vendedor. Não! É melhor não. E se for uma edição pirata? Somente uma edição pirata teria um problema desse. Será que é caso pra chamar a polícia? É melhor disfarçar. Vou ver esse outro aqui. Meu Deus, cadê os pontos de novo? O que está acontecendo neste mundo?!?
-          Você vai levar o Ensaio Sobre a Cegueira ou o Homem Duplicado? - ouço uma voz ao meu lado.
É uma mulher simpática, olhando fixamente para os livros em minha mão.
-          Eu estou procurando o Ensaio para dar de presente. Parece que esse aí é o último – completa ela.
Estendo o livro, quero dizer que não vou comprar, mas ela parece muito simpática e talvez seja gentil avisá-la do erro de revisão, da edição pirata, dessas coisas... Abro o livro e mostro a página.
-          Eu acho que esse livro está com um probleminha – tomo coragem para dizer.
-          Probleminha? Que probleminha? – pergunta ela, olhando com tal naturalidade como se tudo estivesse no lugar. Será que ela não percebeu a falta de pontos?
-          Praticamente não tem ponto, só vírgula – digo baixinho, pra ninguém mais ouvir.
Ela dá um sorrisão. Acho que na verdade isso foi uma gargalhada. Discreta, mas ela riu de mim. O que será que está acontecendo?
-          Você gosta de ler? - pergunta ela.
-          Adoro – respondo, contente.
-          Mas nunca leu Saramago - sorri.
-          Não – confesso - Nem conheço.
-          Não se preocupe com os pontos. É o estilo dele.
-          O estilo dele é escrever assim desse jeito sem seguir rigorosamente as regras gramaticais? Como é que pode? – pergunto apontando a falta de vírgula. Acho que foi uma pergunta bem tola.
-          Essa resposta é só sua. Quem sabe ele não queira lhe tirar o fôlego? Ou deseja reproduzir o pensamento? Quem sabe talvez ele ame tanto a língua e tenha intimidade o bastante para brincar e quebrar as regras? Que tal ler? E descobrir?
Sorrio. Não sei se ela me acha idiota ou precoce. Minha mãe diz que eu sou precoce, mas opinião de mãe não conta. Ela deve ter me achado idiota. Uma coisa ou outra talvez dê no mesmo nessa hora. Dou um sorriso de despedida e me afasto, carregando um Homem Duplicado que vou abrir e ver de novo.
Hoje é o dia mais feliz da minha vida! Vim com o Roberto na livraria e ainda descubro isso. Estilo!!!  Esse cara é louco! É meu herói! Pronto, já tenho um mito. José Saramago. Vou pedir de presente pra mamãe. Não. A mamãe também não quer mais me dar livro de presente. Ela diz que eu só fico sozinha lendo e que tenho que ter vida social. Até me colocou no psicólogo por isso. Mas se aborreceu com ele, porque ele disse que ela e o papai precisavam de psicólogos. Mamãe se aborrece à toa. E acha que livro me faz esquecer da vida. Como pode?, se livro é a própria vida?
Vou pedir pra tia Iolanda. Acho que ela não vai se recusar. Ela também gosta de ler. Quero poder conhecer José Saramago. Ele é fantástico! Faz o que quer. Pode nunca receber o Nobel de Literatura porque quebra as regras gramaticais, mas pelo menos desobedece a Dona Gerúndia. E o livro é todo lindo! Até a capa, a contracapa, as orelhas. Peraí, que isso? O que é isso escrito aqui, meu Deus?!? Mais uma vez, o Prêmio Nobel – peraí, deixa eu ler direito – o Prêmio Nobel de Literatura... Como pode um Nobel de Literatura que não segue rigorosamente as regras gramaticais, como ordena a Dona Gerúndia?
Isso é o máximo: escreve sem ponto e consegue ser prêmio Nobel de Literatura! Será que ele é como eu que adora proparoxítona? Sim. Porque vírgula é uma palavra proparoxítona. E se ele se recusa a usar ponto... Puxa é legal escrever sem ponto, só com vírgula, às vezes, a vírgula fazendo um papel de ponto o que a torna um pouco mais importante e definitiva, porque a vírgula do jeito normal, jamais é definitiva, se bem que do jeito que esse cara escreve também não é muito definitiva, porque agora eu descobri que quando ele quer realmente definitivar ele usa um belo ponto parágrafo.
O que eu acho lindo porque parágrafo também é uma palavra proparoxítona. José Saramago. José Saramago. Como é que vivi 12 anos sem conhecer José Saramago? Dona Gerúndia não pode saber que ele existe. É capaz dela pintar a cara e fazer uma passeata contra ele. Ainda bem que não foi ela quem revisou esse livro. Ia sair tacando ponto a torto e a direito e eu perderia esse definitivo argumento de que posso, sim, escrever sem obedecer todas as regras gramaticais. Posso obedecer à alma. Ai, que bom, José Saramago existe.
-          Eu tô gostando desse cara – penso alto.
-          Bem que eu desconfiei – responde uma voz de além túmulo do meu lado. É Áurea, com duas amigas, rindo de mim quando Roberto volta do caixa com o livro embrulhado.
-          Namorados, namorados, namorados.
Eu poderia sair daqui desta livraria debaixo de outra trilha sonora. Ô garota chata! Mas hoje, com Roberto e Saramago, nem ela nem ninguém vai conseguir acabar com meu humor. É o dia mais feliz da minha vida.

FIM.

Um comentário:

  1. Uhahahaha Excelente!!! Eu me lembro de você ter elaborado alguma coisa com o estilo de Saramago! Que bom que retornou a escrever aqui!!

    ResponderExcluir